Toc





TOC
Solange Amado
Vou tomar café na casa de um amigo. Ele sofre do que Freud chamava de “psicose de dona de casa”, e que o mundo moderno chama de TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo. Não tem um sujinho no tapete, um pingo na pia da cozinha, uma dobra da cortina fora do lugar. Também não tem livros, nem unzinho sequer. Nem aqueles livros bonitões, de pintores ou arquitetos famosos que são usados em mesas de centro para decoração. Nadica de nada.
No seu consultório (é médico), a “parede do Ego” é bem feérica. Cheia de diplomas, fotos e prêmios em línguas variadas. Tudo milimetricamente disposto. Na estante (aí sim) alguns calhamaços de Medicina, em Inglês, francês ou alemão, atestando que ele é um cidadão do mundo ou um profissional bem sucedido. Mas (quem diria), escreve meu nome com jota.
Tem um abajur vintage que pretendo roubar algum dia e tapeçarias enormes na parede, que não carecem de nenhum furto. Nenhuma poeira. Confesso que passo os dedos disfarçadamente nos móveis, mas pode-se lamber a superfície. Parece um centro cirúrgico. Dá gastura. Ao contrário, na minha casa a poeira é um filho pródigo, volta rapidinho ao lar materno.
Quando a gente usa o banheiro, ele corre atrás pra ver se a toalha de rosto ficou bem esticada ou se o sabonete líquido deixou algum pingo na pia.
Pois é, mas a vida bagunça o coreto e às vezes, esse funcionamento do universo é quebrado, e aí, meu funcionamento perverso vem à tona. Mês passado, fizemos uma reunião na sua casa. Ele abriu um vinho caríssimo, colocou na mesinha de centro enquanto buscava as taças de cristal. Uma das convidadas, muito bem servida de traseiro, passou entre a mesinha e o sofá e se inclinou para cumprimentar alguém que estava sentado. Deu uma bundada na garrafa de vinho e lá se foi a dita cuja no tapete persa. A mancha sanguínea se espalhou rapidamente. Santíssimo Sacramento do Altar!
O amigo não sabia se batia na visita, se recuperava o resto de vinho da garrafa ou se chamava uma firma de recuperação de tapetes persas. E ninguém ousou olhar para mim. Já confessei minhas tendências perversas. E basta.
Mas tudo isso é café pequeno, como diria minha mãe. Meu desconforto vem da falta de livros e papéis. Na minha casa, esses itens parecem tentáculos de um polvo: quanto mais doo, vendo ou empresto, mais eles tomam conta de mim, da casa, das gavetas e estantes. É uma atração fatal.
Semana passada resolvi botar ordem no galinheiro. Separei muitos livros pra trocar no sebo. Fiz uma grande pilha que a faxineira foi lá e botou tudo de novo na estante. Arrumou a minha bagunça, como disse com um sorriso orgulhoso. Desisti!
Então, resolvo arrumar os papéis no móvel do computador. Abro as gavetas e olho as trocentas pastas com papéis, grossos, finos, e de seda, daqueles pra escrever cartas antigas. Tudo meio amarelado. Mas não se pode descartá-los só porque são velhos, assim sem mais aquela. São papéis e eu escrevo neles. Temos uma relação de amizade. Não se descartam amigos só porque são idosos. Ainda podem dar um caldo legal.
Vai ver, sofro de Transtorno de Acumulação,carência demasiada, insegurança. As opiniões variam. Alguns acham que preciso de um cachorrinho, outros que preciso de um gato. Já tive um peixinho dourado, mas ele suicidou. Me esqueci de lavar o aquário. E ainda pisei no cadáver no chão do banheiro. Sou um perigo ambulante.
E se querem saber, toda essa “coscuvilhice palaciana” (aprendi essa palavra hoje, lendo “D. Maria I”) , toda essa fofoquice é pra explicar meu prazer perverso com a mancha de vinho no tapete persa do meu amigo. Toda araruta tem seu dia de mingau!



Maria Solange Amado Ladeira                    22/10/2019
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