Inspiração






Inspiração
Solange Amado
Ela pega papel, caneta e um punhado de palavras. Arma o circo. E se sente a dona do pedaço. Simples assim. É uma escritora. E é tudo o que precisa. Ou pensa que é. Cá do meu canto, sorrio com tanta inocência. Sem mim ela não fará nada. Mais inteligente é aquele roceiro instado a relatar a sua queixa por escrito: “Doutor, eu até conheço as palavra; difícil é ispaiá elas no papel”.
É isso. Mesmo com um estoque alentado de palavras, de papel e uma caneta “made in Budapest”, (e nem falo nos brinquedinhos eletrônicos), sem mim, nada feito.
Eu, a inspiração, é que dou a liga. Pode transpirar, pode pirar. Perda de tempo. Se eu não existir. Sem minha colher de pau, babáu, com rima e tudo. E me irrita muito que as pessoas ignorem isso. Se eu não existir, a escrita é o vazio de palavras enfileiradas. Da primeira à última página, o livro é uma formação em passo de ganso. Muita canseira.
O nó da questão é que ninguém me compra, nem me estoca pra lançar mão quando precisar. Sou imprevisível, pirracenta, geniosa, instável, caprichosa. Tenho mau gênio. Não aceito propina, salamaleques, agrados. Quando entesto de não aparecer, recolha-se!
Hoje eu acordei de ovo virado. Lá está ela, a escritora, de papel e caneta. Hora imprópria. Nem bem abri os olhos e ela já está esperando serviço. Sem chance. Não que eu só trabalhe em horário comercial. Não é assim. Tenho até fama de ser uma outsider. Moradora de rua. Vez em quando trabalho melhor movida a álcool. Sou viciada em quase tudo. Gosto de frequentar a noite. Trabalho bastante em mesa de bar, em viagens, de baseado ou de trem. Não importa. Mas é sacanagem ficar me cutucando quando estou tirando a minha soneca matinal. Ela não sabe o tanto que eu trabalhei prestando assessoria aos poetas da noite.
A escritora alega que eu não tenho um horário fixo de trabalho. E não desiste. O problema é esse. Ela não desiste. Grita, me sacode, faz cosquinhas. Eu tento me esconder. Mas às vezes, tenho que capitular. Água mole em pedra dura... infelizmente.
Hoje quem ganhou fui eu. Hoje ela ficou com saudade do seu vizinho. E enquanto eu dormia, escreveu um poeminha em sua  homenagem. Não carecia de interromper meu sono por tão pouco. Deixei-a à sua própria sorte. Não botei minha colher de pau. Mesmo assim, ela foi em frente:
                 “Na porta ao lado tinha um vizinho
                   Que morreu.

         Morreu sem ter trocado minha fechadura
          Aquela da porta da cozinha
           Como prometeu.
            Não se despediu. Estava com pressa.
            Ficou de voltar outra hora.
             E foi embora.
          
              Já faz um ano que a fechadura tá emperrada”.

Eu avisei. Às vezes o poema são só palavras desfilando em passo de ganso. Acontece. Ainda bem que eu estava dormindo.








Maria Solange Amado Ladeira           29/10/19
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