Ladainha
Solange Amado
Ele tem 21 anos. É baixo, gordinho, descomplicado e alegre.
Tem síndrome de Down. Cursou até o segundo grau e foi orador da turma. Toda a
família prestigiou. E ele ficou no sétimo céu. Vai ser engenheiro espacial.
Não mora na cidade, mas frequentemente passa uns tempos na
casa da tia, a quem adora. Nós, amigas da tia, de vez em quando ligamos pra lá.
Ele atende ao telefone, reconhece a voz, pergunta educadamente pela família,
pela nossa saúde. Depois, larga o telefone e berra: “Tiiiia, é uma das
“meninas”! Para ele, somos eternamente as “meninas”. Não obstante, se sente
angustiado quando reflete que devemos morrer em breve, porque somos muito
velhas e isso é normal, como já me disse uma vez. Triste é ele continuar vivendo
sem a gente por perto, porque ele é novo e tem muito tempo ainda pela frente.
Problema mesmo é viver sem sorvete, que só a tia permite em grandes
quantidades. Segredo entre os dois.
Certa vez, ele ouvia calado as “meninas” comentando sobre a
morte de um conhecido, que se livrou de tudo o que tinha e doou o corpo para a
Escola de Medicina. A tia comentou brincando: “Legal! Talvez eu faça o mesmo!”
Foi então que ele interferiu magoado: “Puxa tia! Você não vai deixar nadinha
pra mim?”
Dia desses teve uma crise de labirintite. Não conseguiu se
levantar da cama. Toda a família se preocupou. Os pais foram convocados em
outra cidade. A empregada perguntou se podia fazer um exorcismo, convencida de
que o demônio podia ter tomado conta do corpo dele. Sem problemas, ele
concordou. Daí ela se aproximou da cama e começou a berrar: “Sai daí, satanás!
Sai desse corpo! Em nome de Jesus!” E foi por aí nessa cantilena. Isso demorou
um pouco e ele permaneceu durante todo o tempo com olhos fechados, em silêncio
e meio assustado. Quando finalmente o ritual acabou, ele abriu os olhos e
disse: “É. Mas eu acredito mesmo é em Nossa Senhora Aparecida”. Fim de papo.
Por incrível que pareça, ele é bem religioso. E aí é que a
história começa a ficar interessante: convida sempre as pessoas a rezarem o
terço com ele. Quase ninguém aceita. Um terço inteiro? Pois é, mas ninguém
deveria se preocupar. Não é nada cansativo. Ele pega a primeira continha do
terço e começa contritamente: “Ave Maria Cheia de Graça... na segunda continha
ele diz: “idem” e vai debulhando as contas: “idem, idem, idem” . Até acabar
rapidinho.
Não é esquisito. É a coisa mais criativa que já ouvi. E mais
libertadora. Deixa minhas vistas cansadas de olhar para o passado. A distância
é longa. E me leva até o mês de maio na matriz. Havia o terço e as Ladainhas:
“Santa Virgem das Virgens – Rogai por nós. Santa Mãe Imaculada – Rogai por nós,
Mãe Castissima – Rogai por nós”. A coisa não acabava mais. E a nós, crianças, o
que interessava eram as barraquinhas. A gente ficava salivando pela pescaria, o
tiro ao alvo, as argolas, e os prêmios importantíssimos – três bolinhas de
gude, um arquinho pra cabelo, um pacotinho de bis. Mas primeiro, tinha de
passar pelo Saara das ladainhas. Sem elas, nada de barraquinhas!
Já pensaram como ia simplificar a vida da gente, se uma cara
baixinho e gordinho, que gosta de rezar o terço estivesse ali? Idem,idem,idem.
Puxa! Eu ia ganhar tanta bolinha de gude! E ia mandar em todos os marmanjos da
rua. Isso podia mudar a minha história. É que naquele tempo, a gente tinha
muito futuro pela frente.
Maria Solange Amado Ladeira 15/10/2019.
www.versiprosear.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário