Sobrevivendo em tempos de birutice
Solange Amado
Tem dia que a gente caça assunto até debaixo da cama e néca.
Tem dia que o assunto salta na garganta da gente e não larga. Um assédio
desesperador.
Quando pequena me diziam que eu tinha uma imaginação muito
fértil. Mas não sou eu. É a realidade. Ela é muito criativa.
Dia desses peguei um buzão. Olhei em volta. Nenhum lugarzinho
pra descansar a minha carcaça. De repente uma mulher se levanta e vai ficar de
pé no fundo do ônibus. Ôba! Não entendi a manobra da senhora em questão, mas me
sentei no lugar dela. Ao lado, uma moça ninava um bebê embrulhado em uma
fralda, e cantarolava baixinho, carinhosamente. Olhei o embrulho no colo dela e
me surpreendi. Era um boneco. Peladinho. A não ser pela fralda de pano que o
enrolava. Já vi essa cena ao vivo e em cores em Hospital Psiquiátrico, mas em
ônibus urbano às quatro horas da tarde é algo esquisito. A moça olha pra mim e
sorri; torna a se voltar para o bebê-boneco e continua cantarolando. Seu olhar
me rabisca de vez em quando, talvez esperando minha reação. Não consigo me
conter. Bocuda que sou, abro um sorriso simpático e solto: “Que gracinha o seu
bebê!”. Ela responde seca: “Não é um bebê. É um boneco!” E volta a cantarolar.
Tudo bem. Eu mereci a cara de tacho. Mas eu só queria aplicar
a máxima do Direito: “In dubio, pro reo”. Na dúvida não condene, opte pelo réu.
Me dei mal. Não há regras para a birutice.
E nem pensar. Esse acontecimento não foi o top de linha em matéria
de doidice. Dia seguinte saí de casa fresca e orvalhada pra fazer algumas
compras. Viro a esquina da minha rua e então acontece.
Enorme de gordo, o homem desce aos trambolhões os degraus de
entrada do seu edifício, correndo esbaforido. Vestia uma calça de moletom cujo
elástico não devia estar lá muito bento. Eu passava tranquilamente. De repente,
ele pisa na calça, se enrosca com ela que cai aos seus pés levando consigo a
cueca. O cara vem catando cavaco, calça e cueca embolados no chão. Tenta se
segurar em mim.
Apesar do susto, não caí. Fico ali boquiaberta, abraçada ao
sujeito, que da cintura pra baixo está na base do vento a favor.
Sol a pino. O dia nem chegou à metade e eu já estava no meio
da calçada, meio desequilibrada pelo peso de um homem gordo seminu em cima de
mim. Meu Manual de Sobrevivência em Tempos Anormais não previu uma situação
dessas. Pelo menos em público.
Acreditem ou não, dessa vez não dei nenhum bom dia a cavalo.
Mantive uma impecável fleuma britânica enquanto meu atropelador recolhia a
calça, a cueca e a dignidade caídas na calçada.
E não pensem que alguém agradeceu essa discrição de número
10, de Downing Street. Nem uma palavrinha. Nosso herói se escafedeu o mais
depressa possível.
Pois é. O mundo é injusto. Dessa vez, não era nenhum boneco
pelado enrolado em uma fralda. Eu não abri a boca, mas fui presa assim mesmo. Só não se esqueçam: “in dubio pro reo”.
Maria Solange Amado Ladeira -
17/09/2019
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