Precocidade
Solange Amado
Ela não sabe se é a idade, o mormaço, ou a saudade de uma
esquina em París, onde foi feliz por cinco dias. Não tem a mínima ideia. Ela só
sabe que anda um tanto sentimental.
Derrama lágrimas até pelo que poderia ser, mas não foi. Deve ser uma
epidemia, entre tantas que assolam o
país.
Abre os olhos. Durante a noite uma aranha minúscula fez uma
teia, do pé da sua cama até a janela. Ela destrói a teia e mata a aranha.
Talvez porque se sinta invadida. Foi o bastante. A pobre senhora mergulha na
autopiedade. Se sente culpada. A manhã inteira fica sentada na poltrona do
passado. Decididamente, um passado que a condena. Algo deve ter dado
terrivelmente errado para que o seu sonho de amanhecer no Quartier Latin
comendo brioches se resuma a uma teia ao pé da cama. Tantas ideias se
eminhocando dentro do cérebro durante a noite, e o resultado é uma teiazinha
vagabunda e uma aranha idem. Criatividade medíocre, de terceiro mundo. Nunca
passou disso. Mas até que prometia.
Só sabe que sempre foi bocuda. Uma vez, quando tinha seis
anos e se enfiou em alguma encrenca, o pai botou a mão na cabeça e berrou: “Meu
Deus! A quem essa garota puxou pra ser esse capeta!” Ela se lembra claramente
da sua resposta desaforada: “Ih! Pai! É uma questão de hereditariedade!”.
Ninguém achou engraçadinho. E o chinelo cantou.
Anos se passaram e uma vez seu sobrinho pequeno, com quatro
anos, perguntou ao avô de setenta e cinco. “Vô, você já é bem velho, né? Quando
é que você vai morrer?” Pois é, todo mundo achou engraçadinho. Não levou
nenhuma chinelada no lombo. Mais: outro dia, ele, já com seis anos, chegou da rua
com a avó, correndo pro banheiro. De lá, gritou para a avó: “Vó, ligue a TV!” A
avó perguntou: “Em que canal?” ”Cartoon” , foi a resposta. Seguiu-se uma pausa
e ele acrescentou: “Mas não confunda com a capital do Sudão (Kartum). Ele já
decorou todas as capitais pelo mundo afora. Um geniozinho. Quanto mais sede tem
de conhecimento, mais lenha a família joga nessa sua fogueira. Nenhuma
chinelada na bunda. Mundo injusto!
A velha senhora se remexe incomodada na poltrona do passado.
E se? E se a sua curiosidade não tivesse recebido chineladas? E se ela, um dia,
tivesse contado para os outros que já sabia que a capital do Sudão era Kartum.
Viu no “Mundo Pitoresco”. Seria agora uma gênia?
Todas as palavras que ficam cutucando a sua cabeça se
encaixariam num design perfeito. Alguém agora estaria escrevendo a sua
biografia, devidamente calcada no que deveria ser e não foi. Seus pósteros
ficariam embevecidos com sua personalidade brilhante e talentosa. Nunca mais
teias de aranha nas suas ideias. E ela ia viver no Quartier Latin comendo
brioches.
Vocês podem não saber , mas sucesso, grana e brioches são
tudo na vida. Eu diria até que são algo
sublime. Ou seriam, se Cervantes não tivesse mostrado a tênue diferença
entre o sublime e o ridículo. E agora? Adeus brioches...
Maria Solange Amado Ladeira 21/05/2019
www.versiprosear.blogspot.com.br

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