Alma de poeta





Alma de poeta
Solange Amado

A vida oferece surpresas agradáveis. Estava eu garimpando pelos sebos da vida, quando encontro um livro de suspense. Um vício que não faz mal a ninguém. E não é pecado capital. Então, eu o cultivo sem culpa. Vai daí que o título me chamou a atenção:” Sem tempo para despedidas”. Nunca ouvi falar do autor, mas isso é irrelevante. Desconhecidos costumam me surpreender agradavelmente, mais do que conhecidos. Levei-o para casa e não nos desgrudamos mais por uma semana. Um caso de amor meteórico. E aí nos despedimos. Deu tempo.  O bom da vida são esses pequenos prazeres  e depois tudo volta aos trilhos. Amanheço no reme-reme da mesmice.
Hoje tem sol. Não é sábado. É uma reles terça-feira. O mundo continua girando, as pessoas se odeiam, se beijam, se estapeiam, se amam e se casam. Não exatamente nessa ordem, mas não há ordem no mundo, e nem justiça. Não adianta procurar.
Saio cedo. O sol nascendo é uma explosão de cores. Muito lindo. Minha amiga, ao meu lado, tem lágrimas nos olhos, se derrete toda com o sol, com a lua, com uma borboletinha ou uma florzinha no asfalto. Chora atoa. É uma galinha. Cheia de penas pelas desigualdades do mundo. E não compreende meu interesse por  esse sub-mundo de intrigas, conchavos e crimes.
Essa minha dureza é explicável. Segundo ela, não tenho “alma de poeta”. Nem sei se tenho alma, quanto mais a de um poeta. Mas respondo: “É. Eu sou assim mesmo.” E na mesma hora me lembro da história do sapo e do escorpião. O escorpião pede ao sapo que lhe dê uma carona para atravessar o rio. O sapo concorda, desde que o escorpião prometa não lhe dar uma ferroada. O outro aquiesce. E iniciam a travessia. No meio do rio, o escorpião, surpreendemente, tasca uma ferroada no sapo. Antes de bater as botas, o sapo pergunta: “Você também vai morrer. Não sabe nadar, então, por que fez isso?” O escorpião responde: “Porque é a minha natureza. Eu sou assim”.
Não que eu seja um escorpião. Mas a vida é. Já me deu um bocado de ferroadas. E é esperta, e bem mineira. Vai comendo pelas beiradinhas. Vai destilando o veneno aos pouquinhos. Um dia vem a ferroada final. Ela é assim, bem traiçoeira. Vai mostrando florzinhas, bichinhos, sol colorido, mar azul, um doce amor, e quando você se distrai, ela zás! Enterra o ferrão. É da natureza dela. Não dá pra se distrair. Olha o passarinho! Vai que essa é a hora da ferroada final.
Não me iludo. Desde muito tempo ando atravessando o rio carregando o escorpião da vida nas costas. Não adianta nada tentar um acordo. A vida não cumpre. Ferra a gente sem dó nem piedade. Ou você se arrisca ou se arrisca.  Porque, no frigir dos ovos, é só uma questão de tempo, quer dizer, o tempo continua e nós acabamos.
Até agora, toda vez que a vida finca as garras em mim, entrego a minha “alma de poeta” com palavras doces e delicadas, florzinhas e passarinhos e resisto com palavras duras, fortes e sobreviventes. São as únicas que neutralizam o veneno do escorpião, porque as garras dele vão até o tutano. Não aliviam.
Claro. Às vezes eu dou uma fraquejada. Essa semana me enamorei e comprei um quadro fofo, cheio de passarinhos. Foi uma espécie de tropeço. Vai ver, foi minha “alma de poeta” dando as caras. Mas é melhor não contar pra ninguém. Se a vida fica sabendo, ela se locupleta.
E se querem mesmo saber, o livro de suspense me deu 350 páginas de prazer, com uma narrativa primorosa, até mais da metade do rio, depois cansou e se perdeu. Mas eu continuo buscando. Um dia eu completo o percurso. Ou afundo.







Maria Solange Amado Ladeira         - 28/05/2019
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