A língua da roça





A língua da roça
Solange Amado
Minha faxineira tem “mébi”. O médico disse pra ela que  “mébi” é um bichinho que fica lá dentro roendo, roendo, até que a gente fica oco e morre. Que nem  as árvores em volta da Igreja da Boa Viagem. Os bichinhos estão comendo elas por dentro. Aqueles troncos enormes vão ficando ocos e pimba! Caem e morrem. “Mébi” é fogo!
Deduzo que “mébi” é ameba. Pergunto se o médico lhe deu a receita e se ela comprou o remédio.  Sim, deu, e não, não comprou. Pergunto por que não? E a resposta me surpreende: “Porque o médico não sabe escrever”. Como assim? “A língua dele é diferente. Ninguém conseguiu ler o que ele escreveu, em nenhuma farmácia!” Digo pra ela voltar e pedir ao médico que escreva de maneira mais clara a receita. “Não tenho coragem não. Ele pode ficar “milhado”. Vai ver ele não sabe escrever o nome do remédio”. Além do mais, ela acrescenta, como é que eu posso ser boba desse tanto. Se o doutor diz que a “mébi” dela é antiga. Tem tanto tempo que ela tá lá roendo que não tem base ela ainda estar viva. Vai ver, foi engano. Médicos não são confiáveis. Ainda mais um que não sabe escrever o nome do remédio.
Vai demorar quase um ano para a nova consulta e antes ela tem de fazer uma “escopia”. O que é isso? “Uai, um insame!” Sim, mas de que tipo? Peritonioscopia? Colonoscopia? Laparoscopia? Que tipo de “scopia”? Ela acha que eu tenho a informação. Isso é coisa de gente que sabe falar. Palavras grandes e complicadas são meu departamento. Lá na roça, de onde veio, a língua é outra. Quando eu lhe digo para trocar de lugar dois quadros na parede, ela responde: “Não pode. Um é “mais grande” do que o outro”. Corrijo. E fico sabendo que “maior” é a língua da cidade, “mais grande” é a língua da roça.  Fisioterapia, psicoterapia são palavras da cidade e terapia é língua da roça. Palavras grandes não pegam o caminho da roça.
Isso eu já aprendi. Mas em 25 anos, eu e minha faxineira ainda não chegamos a um denominador comum entre palavras grandes e pequenas, entre caminho da roça e da cidade.
Há dias, a neta dela, que mora na Alemanha, disse que ia enviar a passagem para a avó ir lá  passar uns tempos. Ela me respondeu: “Fala pra ela que não carece gastar tanto dinheiro. Eu vou de ônibus mesmo. E nem preciso pagar”. Informei a ela que não se vai à Europa de ônibus. “Não é a Europa. A cidade chama-se Alemanha. Lá o pessoal fala esquisito que nem sua irmã (minha irmã tem sotaque carioca). Só disso que eu tenho medo. Desse pobrema da língua. Às vêis, as palavra é assim compricantes, não dá liga no ouvido. As vêis, elas são sinceras”.  Quem sou eu pra dizer o contrário.
E foi pensando nesse caminho da roça que acordei hoje. Primeiro verifiquei se tudo estava funcionando nessa velha carcaça pouco confiável. Estava. Mas era cedo para colocá-la em funcionamento. Então deixei os neurônios passearem livres pela manhã que nascia.. Peguei o caminho da roça. Fui até o Córrego do Feijão. E mergulhei na minha infância, quando as palavras eram “descomplicantes”.
Vinha eu subindo a estrada na peleja. No caminho, passou por mim um morador do lugar que também vinha pelejando morro acima. Eu disse: “Tô morta!” E ele: “Uai, dona. Num parece. A senhora já lá vai num galope bão...”
Por mais pesada que seja a realidade, o linguajar pitoresco da roça faz sempre parte do DNA de quem veio daquela bandas. Uma carícia prá mode aguentar o tranco e continuar o galope diário. Palavras meio xucras, mas sinceras. Cês num acha?




Maria Solange Amado Ladeira               14/05/2019
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