Edelweiss
Solange Amado
Ela lia no ramerrão da tarde. Friozinho cortando as carnes.
De repente, aquela palavrinha aparece desavisada e vai puxando o novelo de
lembranças. E a saudade vai tricotando imagens da sua infância.
A palavrinha se perdeu nas dobras do tempo: ENTIOTAR. Ainda
se usa esse verbo? Tem suas dúvidas. Ainda se usam arranjos, grinaldas, véus,
vestidos de noivas com florzinhas entiotadas, uma por uma por toda a
superfície? Ou alguma máquina já cospe pronto o arranjo de flores? Pode ser,
mas nada vai superar o encantamento, o prazer dos olhinhos atentos à mágica que
fazia a vizinha idosa, cabelos brancos, mãos ágeis. E as flores nascendo uma
por uma, como as edelweiss, suaves, brancas e brilhantes espalhadas pelos
Alpes. Aprendeu a cantar essa canção por causa das florzinhas entiotadas. A mão
firme da velha senhora segurando o instrumento esquisito, com uma pequena
esfera na ponta. Ela esquentava a esfera na chama da vela acesa e apertava
sobre o pano cortado. As pétalas se levantavam, se movimentavam como se
criassem vida. Encantamento puro. Às vezes, aquela vovó pegava na mãozinha da
menina e com muito cuidado para que ela não se queimasse, fazia-a entiotar uma
florzinha. É isso. As lembranças vão brotando como a palavra-flor.
Do lado de fora da janela, o rio corria manso e a mangueira
se debruçava sobre ele. O sol queimava o chão do terreiro, que não era nos
Alpes. Ela nem sabia onde ficava esse
lugar, mas conhecia as florzinhas. Havia pobreza, fome, sofrimento pelo mundo,
mas a vida era puro prazer no esconderijo de teto alto cheio de flores
brancas. Muitas. Muitas flores.
A velha senhora era exigente, e às vezes embirrava com alguma
pétala que não obedecia ao comando da esfera quente. A rebeldia da pétala estragava
a ordem do mundo da florista. Então, a menina ganhava de presente essa
florzinha troncha, cheia de necessidades especiais. Mesmo assim linda.. Às
vezes fazia um buquê daquelas flores imperfeitas, tão parecidas com ela, que
não se encaixava muito na ordem da vida. Pelo menos da vida dos adultos.
O quarto de ENTIOTAR. De fazer a vida virar flor. De enfeitar
o mundo. De desaparecer com a feiura. Alí ela não se sentia tão torta, tão
diferente, Alí, mesmo com a pétala torta, flor era flor. Seu buquê era assim,
com as sobras do mundo perfeito da florista. E tão belo quanto.
Só mais tarde, ela aprendeu que as pétalas não respondem da
mesma forma às pressões da vida. Não importa. Tem sempre uma menininha fazendo
o seu buquê com essas flores com uma estética atrapalhada. Porque assim são as
crianças.
O rio lamacento, o sol causticante, a poeira do chão, a
vegetação seca, o joelho ralado, o quartinho humilde de fundos, as injustiças
da vida, a morte trágica do irmãozinho. Tudo foi se esmaecendo , foi sendo
superado no livro da sua vida, pela delicadeza daquele tapete de edelweiss que
nascia no quartinho de uma casinha humilde, se espalhava pela neve dos Alpes e
ainda hoje forma um tapete vivo de lembranças de alegria e prazer.
Tudo porque a danada da palavrinha torta abriu caminho até o
coração da sua infância, quando pouca coisa era o bastante para ser feliz.
Maria Solange Amado Ladeira 08/10/2019
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