A terceira margem






A terceira margem
Solange Amado

A dona do sítio tem uma vida atarefada. Pouco tempo para administrar sua terra. Tem sido negligente e reconhece  que o peso tem ficado por cima do caseiro, homem simples, analfabeto, mas bom de trabalho e de prosa. Produziu com a mulher uma “ruma assim de fia”, como gosta de dizer. E ele fala mais do que todas elas.
Quando chega, a senhora gosta de trocar uns dedos de prosa com “Seu” Zé sobre o andamento das coisas e as recentes fofocas da vila. E ele não se furta às bisbilhotices: “Sabe a D. Filó, a veia catadora que mora parede-meia com o Grupo Escolar? Pois é, agora deu de ofertá tudo pros outros. Já num tem quais nada em casa. Ficou dadivosa dispois de veia. Só farta dá as roupa do corpo. Com pouco, fica pelada.  Comparação, D. Margarida, aquela veia rica do casarão da praça garrô de juntá tudo. Diz que a casa tá que é lixo puro. Ela junta guimba de cigarro, palito de fósforo, tudo enquanto há. As fias num tão dando conta”. Uma pausa e ele observa: “Que coisa! Pra lá nóis vamo tudo. Quando a veiança se instala é que se assenta a precisão dos miolo”.
Troco um olhar com a patroa dele e ficamos assuntando sobre essa “precisão dos miolo”. Caetano aparece no pedaço com seu “navegar é preciso, viver não é preciso”. Certamente não é essa “precisão”. Mas é por aí o caminho. Lembro-me de me embarafustar pelos textos de Lacan e do esforço pra “ouvir com o terceiro ouvido”, e sobretudo, me lembro do Guimarães Rosa com a sua “terceira margem do rio”. Penso que é tudo parente. Aquela famosa história de subverter a máxima de Descartes: “penso, logo sou” para “penso aí onde não sou” como propôs Lacan, porque sempre tem algo que escapa: o terceiro ouvido, a terceira margem. “Seu” Zé fagocita as palavras, Rosa também. Come, mastiga e devolve lá a seu jeito. É assim o escrever.
Verdade. Há sempre algo que escapa, há sempre algo que não damos conta, e esse tatear em busca dessa precisão é que se chama estilo. Ele é meio manquitola mesmo. Às vezes toma o rumo de Deus, às vezes, do diabo, e esse rumo está nas nossas mãos, só que nunca sabemos aonde vai nos levar, onde essa canoa vai aproar.
Mário Quintana, o mestre, dizia: “O estilo é uma dificuldade de expressão” Escrever é um caminho tortuoso. São muitos os obstáculos. Você trupica nas palavras e quando acha que não dá pra passar, sai pela tangente. Só não vale frescura. Tem de botar o pé na lama, na poeira da estrada, na água do rio, ir subindo a ladeira como bois de canga, inventando o caminho, o caminho que a “precisão” da cachola exigir.  Nem sempre vai dar certo. Você vai se machucar.
A vida é assim, uma tentativa. Vai indo, e nessa levada, a gente nem sabe aonde vai nos conduzir a “precisão dos miolo”. Aí nesse lugar eu não sou. Já me perdi. Não posso controlar o caminho, “o que deixa a gente assim, culpada. Do que? Nem sei, dessa dor em aberto no meu foro”.
E por isso, a gente escreve. E vamos todos, cada um carregando a sua “dificuldade”, que é, por si mesma, a sua “terceira margem”.
“Sou doida? Ninguém é doido. Ou então, todos”. Só tô tentando desbastar o caminho, alumiar um pouco as trevas, levando um lenço “pro aceno ser mais.”







Maria Solange Amado Ladeira                                    05/11/2019
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