Frustração







Frustração
Solange Amado
Querido diário:
Hoje eu acordei de ovo virado. A vida é uma porcaria, o mundo é uma porcaria. E eu sou uma porcaria-mor. E não adianta esse mi-mi-mi de pensamento positivo. Não mesmo. Sem chance. Quero que o mundo acabe em melado pra eu morrer doce. Aliás, é a única maneira de eu ficar doce. Porque tô azeda.
E não ajuda alguém gostar de mim. Porque esta é uma questão de foro íntimo. De mim comigo. Tem dia que não caibo dentro de mim. E ninguém cabe. Tudo perfumaria. Que nem creme rejuvenescedor.
Então, dispensei até o passarinho que quase toda manhã vem cantar na minha janela: “Passa fora piu piu! Não tô afim de ouvir suas garrulices hoje. Tô fechada para balanço!”.
Normalmente, acho uma fofura e recebo os piados como uma  homenagem à minha simpatia.Não sei por quê. Talvez porque seja bom. Vez em quando é bom se considerar especial acordando com um pássaro cantante na janela e o nascer do sol numa explosão de cores. Coisas que não têm nada a ver comigo, a menos que eu pegue e bote no bolso das minhas emoções. Mas hoje o bolso está vazio. Ou melhor, está cheio de emoções negativas. Bobagem, que nem cabe hora nenhuma essa expressão “emoções negativas”. Emoções são emoções. Nem positivas, nem negativas. Elas simplesmente existem. Nosso inconsciente não faz essa distinção. Que nem o preconceito. Todo mundo tem.  E não se pode fazer nada. Ou melhor, só se pode controlar a atuação dele. E já tá muito bom. Ok, mas hoje eu não quero controlar nenhuma maldade.
Meu inconsciente tá na base do vento a favor. Correndo pelado pela alameda do politicamente correto. Tô nem aí!  Mas o passarinho parece estar possuído por essa  mesma vibe do “to nem aí”, porque volta e continua a cantoria.
E tá frio pra sair pelada. Visto um casaco e vou me limitar a botar a língua de fora pra  quem quiser ser simpático. Mal me encho dessas boas intenções e o porteiro do edifício me cumprimenta com um sorriso iluminado e elogia meu cabelo. “Vá pra Tonga da mironga!” Digo pra mim e sorrio amarelo. O celular toca. Alguém que eu mal conheço diz que leu meu livro emprestado por uma amiga. Gostou tanto que quer um exemplar. Meu projeto mau humor ameaça fazer água. Mais um pouco e meu inconsciente pelado vai pro brejo. Preciso ficar firme. Talvez tenha algum, cocô pra eu pisar na calçada. Mas nem os cachorros de rua querem colaborar com a minha empreitada de azedume.
Ao voltar do supermercado, o dono da banca de jornal, um velhinho todo torto que me chama de “minha princeza”, me oferece um cafezinho e uma revistinha grátis de palavras cruzadas.
Assim não dá! O ser humano é fraco, influenciável. Bastou um passarinho cantando na janela, um nascer do sol colorido, dois ou três elogios para os meus propósitos irem por água abaixo. Logo hoje, que eu tencionava mostrar para o mundo o quanto eu o desprezo. Logo hoje que eu ia mostrar o dedo médio para essa sociedade maluca. Logo hoje.
Tá certo. De boas intenções o inverno está cheio. Quando chegar o verão e meus miolos estiverem cozinhando de maneira insuportável debaixo do sol, aí sim, vocês vão ver. Eu vou cuspir legal na face fingida do mundo. Por enquanto , o projeto fica adiado. Enquanto houver passarinho cantando, cafezinho na esquina, sorrisos e elogios, fica difícil. Convenhamos!.









Maria Solange Amado Ladeira     -  11/06/2019
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