Insônia






Insônia
Solange Amado
Essa noite meu sono ficou perdido nas dobras do lençol. Não consegui encontra-lo. Acendi a luz e puxei um livro na minha cabeceira, do qual estou nos últimos estertores. A vida de Maria Callas, a grande cantora de ópera. Achei lá uma receita interessante para emagrecer,  a quem interessar possa.
Callas narra que foi desde sempre uma mulher imensa, se dizia  feia, gorda, espinhenta e muito pobre. Apesar desse layout desfavorável, a voz era tão poderosa, que ela abriu caminho a ferro e fogo. Quando já estava bastante famosa, veio o ultimatum de diretores e maestros. Ou emagrece ou emagrece! Não há como fazer o papel de heroínas lânguidas, morrendo de tuberculose com esse corpanzil. E agora?  Ela era um bom garfo e a genética não ajudava, além de se alimentar em horas bem esquisitas.
A solução veio de Hollywood. Do médico de nove entre dez estrelas, desde Jayne Mansfield até Marylin Monroe. Lá foi ela. E o cara foi curto e grosso. Duas soluções: cocaína ou tênia. A mulherada sempre preferia a primeira solução, que a segunda era muito nojenta. Mas aí viciava e a vaca ia pro brejo. Vai daí que ela optou pela tênia. Engoliu 20 ovos de tênia com um bom champagne.  Elas se alojaram no cólon (não confundir com o teatro Colón, de Buenos Aires). Deu resultado. Em um mês, emagreceu 19 quilos. O tratamento terrível a que teve que se submeter pra se livrar da tênia são outros quinhentos centavos, e não dá ibope. “Callas-te boca!” A vida é muito doida.
Mas volto ao desaparecimento do meu sono. Ele insiste em se esconder. Acabo Maria Callas e puxo “Madame Freud”. Pior. A autora imagina o que Martha Freud diria se tivesse voz. Caracas! Tanta submissão me bota aflita. Mais escondida do que meu sono. Uma dona de casa apagada com um marido genial, que parou de fazer sexo aos 40 anos. E só pensava naquilo!  É ou não é doideira? Desisto.
Ligo a TV na esperança de que o febeapá que sai da telinha me dê sono. Acho que o programa vem da Inglaterra. Noivas plus  size escolhendo vestidos para o grande dia. O que me espanta é que aquelas modelos de Bottero, invariavelmente,  querem algo “para acentuar as curvas”. Acentuar? E eu aqui quase engolindo um ovo de tênia. Como diz minha faxineira: “tem base não!”
Sei lá. Ando meio encafifada. Ontem fui pegar o elevador, quando um vizinho veio correndo. Esperei com a porta aberta, por amabilidade.  O sujeito, de terno e gravata, agradeceu e entrou. Estendeu o dedo indicador pra apertar o número do seu andar. E foi aí que eu notei as unhas enormes e bem feitas, pintadas com cores fortes e diferentes para cada dedo. Escondi minhas modestas unhas cortadas no sabugo e tentei esconder meu espanto.  Inutilmente. No dia seguinte, meu informante-mor, o porteiro, me contou que ele diz estar no corpo errado. Quer se mulher. “É o tal de trans, né?”. É. Mas ele tem uma namorada, de aspecto bem feminino. Tenho de consultar os universitários.
Vai ver é isso. Sono não é palavra masculina. É trans. Não se encaixa muito bem na noite e dentro da caixinha do meu cérebro. Anda se rebelando e tenho de conviver com isso. Com a indefectível sensação de estranheza.
Porque, se querem saber, apesar dos pesares, acredito que “essa terra ainda vai cumprir seu ideal”. Não sei se se torna um imenso Portugal. Mas um manicômio a céu aberto, lá isso vai, sem dúvida!










Maria Solange Amado Ladeira    -18/06/2019
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