Doidices






Doidices
Solange Amado

Ele mora na esquina. Qual esquina? Não interessa. Qualquer esquina. De qualquer maneira, é nômade.  A morada mais longa foi em uma esquina movimentada do bairro. A farmácia que havia naquele endereço fechou as suas portas e ele se instalou ali. Com cama, colchão, roupa de cama, travesseiro e acreditem se quiser, uma mesinha de cabeceira, com um livro em cima e uma plantinha. O livro e a flor, acredito, só enfeites. Peças de decoração. Para  entrar na farmácia era preciso subir uma escada com três degraus. E era ali que ficava a sua mobília.
Ele acordava cedo, arrumava sua cama de modo irrepreensível, virol esticadinho e travesseiro, irrepreensívelmente limpos. Deixava tudo ali e botava pernas no mundo, isto é, no resto do bairro, onde levassem suas pernas cambaleantes. Ou o álcool e as drogas na cuca.
Alto, barba cerrada, uma juba suja e desorganizada na cabeça, a figura mete medo. Mais ainda quando cisma com qualquer cidadão ou cidadã e começa um discurso de nonsense religioso ou político, francamente delirante na cara do passante que, apavorado, tenta se desviar, com medo de ser agredido. Não se tem notícia de que tenha agredido fisicamente alguém, mas por via das dúvidas...
Tem uma convivência pacífica com o posto de polícia das imediações. Desde que ele não roube, pode deambular por ali em paz, comendo o que lhe dão e bebendo sua pinga em paz e haja pinga! Cambaleia, delira, alucina e planta bananeira no meio dos carros.
Acontece que tem um hobby, ou um sonho, como quiserem: quer tocar bateria. O problema é que não tem uma. Nem grana pra comprar. A solução é fazer das latas de lixo sua bateria particular. Esmurra as lixeiras a qualquer hora do dia. Todos os que trabalham ou moram nas proximidades já conhecem sua performance. Já detonou todas as lixeiras do quarteirão em volta da sua “moradia”. Quase todas já desmoronaram sob seu entusiasmo. Mas como fica feliz com a exibição do seu talento musical! A fisionomia se transforma. Ele faz caretas, acompanha o ritmo com o corpo e entra em alfa. Nem te ligo pros passantes assustados.
Pois bem. Dia desses, ele começou o seu ensaio de bateria bem cedinho na frente de um dos edifícios da esquina oposta à sua “residência”. Rua cheia e ele lá, na sua barulhada infernal. No mesmo horário, um morador do edifício, que trabalha à noite tentava conciliar o sono. Meia hora desse fundo musical debaixo da sua janela e o sujeito surtou: encheu um balde de água e ploft! Despejou em cima do baterista. Nem um pingo d’água atingiu o sortudo, mas duas velhinhas que passavam pela calçada levaram um banho. E o tempo ficou quente.
Uma das velhinhas, molhada até à alma, teve um piripaque. Foi levada para o interior do edifício e desmaiou. Os paramédicos foram chamados,a polícia idem, enquanto a síndica quase saía no braço com o morador estressado, multa pesada para o condomínio. Os policiais tentavam ouvir as partes .Os transeuntes se juntavam diante das grades do edifício pensando que fosse briga de marido e mulher. Tinha até um coral gritando: “Lei Maria da Penha nele!” . E o porteiro tentava conter todo mundo e mantê-los do lado de fora das grades.
Ninguém se lembrou do nosso herói batuqueiro que parou sua bateria, frustrado com a desatenção do público e olhava espantado toda aquela comoção à sua volta. O circo pegava fogo: a velhinha arriada em uma cadeira, os paramédicos medindo a pressão, síndica e morador se insultando mutuamente, polícia fazendo meio de campo e o populacho apreciando o imbróglio.
Abandonado em seu canto, melancolicamente posto pra escanteio, nosso baterista frustrado, coçou a cabeça e resmungou: “Caracas! Como tem gente doida nesse mundo”!




Maria Solange Amado Ladeira                            12/11/2019
www. versiprosear.blogspot.com.br



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