Contemporânea






Contemporânea
Solange Amado

Ela não é propriamente minha amiga. Nunca tivemos lá muita intimidade. Digamos que ela é amiga da amiga da minha mãe. Nos encontramos esporadicamente. Não sei muito da vida dela. Mas admiro a sua teimosia de viver.
Tem 95 anos, mora sozinha, e é surpreendemente lúcida para a sua idade. Faz hidro no lugar onde eu nado e, não obstante a dificuldade em caminhar, vai e volta sozinha para as aulas. Chega arfando e desaba numa cadeira. Fôlego recuperado, entra na água e nunca reclama da temperatura. Energia não lhe falta e vaidade também não. Maquiagem, brincos e pulseiras combinando. Sempre.
Outro dia, botei reparo: Ao ser fotografada durante uma festinha da turma, teve a preocupação de avisar: “por favor, disfarcem a minha barriga”.
Vai daí que, dia desses, saímos as duas no mesmo horário e ofereci meu braço para ajudá-la a percorrer os três quarteirões até em casa, não obstante duvidar que minha capenguice fosse de grande valia. Pelo sim, pelo não, lá fomos nós, com ela se apoiando pesadamente em mim. Lentamente, fomos nos movimentando como dois bois de canga, aproveitando para uma prosa básica.
Cheia de boas intenções, resolvida a jogar conversa fora, eu disse: “Então, D. Fulana, a senhora vai viajar no feriado?” Ela me olhou severamente com ar de poucos amigos e disse: “Olhe, por favor, não me chame de senhora, afinal, nós somos contemporâneas”. Doeu, mas aparei o golpe com um sorriso amarelo. E continuamos a prosa, com ela insistindo em abrir seu baú de recordações.. Seu, vírgula, as “nossas mais caras lembranças de infância” porque ela teimava em me incluir naquelas memórias de antanho. “Você se lembra  quando o Brasil entrou na segunda guerra? Meu noivo foi preso porque era filho de alemão. Eles começaram a ter ódio de alemães. Lembra?” Eu ainda não tinha nascido, mas é claro que me lembrei. “E os chapéus que a gente usava, hein?”  Oh! Claro, era lindos! “A Casa Itália. Que beleza! Pertinho de você!” Claro! Eu me lembrava de tudo com muita saudade. Aguentei firme e suspirei por esses bons tempos até chegar ao seu edifício.
Semana passada, encontrei minha “contemporânea” numa reunião de aniversário de uma amiga, que fazia 70 anos. Montes de velhinhas. A faixa etária variava de 65 a 90 e muitos. E aí é fácil adivinhar o tema da conversa: a morte. Na sua versão leve.
E aí, “minha amiga de infância” contou que há alguns meses, sofreu uma cirurgia de emergência e quase bateu as botas. Foi um episódio dramático.  Ela estava sozinha quando dores horrorosas começaram. Ela ligou para o filho que não mora em BH. Ele acionou parentes, amigos e uma ambulância e foi aquela correria.
O primeiro a chegar ao hospital foi o neto, sem saber  direito o que estava acontecendo. Informado de que a avó estava partindo dessa para melhor, entrou no quarto esbaforido e se deparou com a velha, branca como papel, ligada a um monte de tubos, olhos fechados, respirando com dificuldade. Aí o rapaz não teve dúvidas, pegou delicadamente a mão da avó, e enquanto acariciava seu braço, dizia: “ Vai vovó, vai em paz. Não tenha medo. Lá é muito melhor. Você vai encontrar fulano, beltrano, ciclano... “ e foi indo nessa cantilena. Foi quando nossa amiga abriu os olhos indignada: “Ô seu merdinha! Não to indo pra lugar nenhum não! Vira essa boca pra lá!” Pois é, disse ela, “ainda não foi dessa vez!”.
Depois de muitas gargalhadas, uma das “garotas” observou: “Pior foi minha tia que morreu de um ataque cardíaco sentada no vaso!” Seguiu-se um silêncio embaraçado, e alguém exclamou: “Cruzes! Morrer de bunda de fora é brabo!”.
Foi quando minha companheira de infância, do alto dos seus 95 anos observou: “Minha filha, morrer de qualquer maneira é brabo, o que me preocupa é que, atualmente, em tempos de rede social, estamos vivendo de bunda de fora”.
Que me desculpem os otimistas, mas além dessa constante exposição das partes pudendas, estamos imersos numa filosofia laxativa: ao primeiro sinal, tudo desanda.
Incomoda. É fato. Mas tem um escritor turco, Ohan Pamuk, que diz que o papel do poeta é se vingar do mal estar. Eu não sou poeta. Não tenho nada com isso. Eles que se virem!






Maria Solange Amado Ladeira      -  23/04/2019
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