As mãos
Solange Amado
É na esquina de baixo da minha casa que eles se encontram. Há
anos. Um encontro em bronze. Não sei o que discutem. Dois senhores de terno,
com ares severos, de poucos sorrisos, mas com muita camaradagem. Dois mestres da palavra: Pedro Nava e Carlos
Drumond de Andrade. O gordo e o magro. Ambos bons de saliva, mestres no papo.
Pedro tem nas mãos um livro. Segura-o com a mão esquerda,
enquanto a direita se dirige em direção ao amigo, num gesto afetivo, de quem
tem familiaridade com o colega. A mão
esquerda continua sustentando o livro ternamente, amorosamente. Afinal, é um
livro. Quiçá, o seu livro. A delicadeza do toque revela o amor pelas palavras.
CDA, ao lado, toca o braço do amigo com a mão esquerda, como se quisesse
acentuar o que diz; junta o gesto à palavra. É lindo de se ver esse papo entre
amigos numa rua da cidade. É bonito de se ver a camaradagem entre poetas. É tão
bonito que me comove, e sempre me aproximo e tento tocá-los com reverência.
Talvez, quem sabe, possa se pegar por osmose essa familiaridade com as
palavras. Talvez eu perceba retalhos dessa conversa cheia de mineirices numa
esquina qualquer. Talvez talento seja contagioso, ou quem sabe, eu possa levar
pra casa um pouco da escrita que escapa da farta mesa de Carlos e Pedro.
Sempre passo por ali e os cumprimento: “Bom dia, colegas!”.
Gosto de pensar que pertencemos à mesma irmandade, que somos efetivamente
colegas. Aproveito que pretensão e água benta ainda são de graça nesse país.
Eles nunca respondem, nem sequer me dirigem o olhar. Mas são vacas sagradas. Só
me resta prestar vassalagem, e beber nas suas tetas, o leite farto do talento.
Mas ainda tenho esperanças. Quando eu crescer. Se eu crescer,
posso entrar naquela conversa e formar um trio em bronze. Isso se Carlos tirar
a pedra do caminho e Pedro abrir o seu baú de ossos. Por enquanto, me contento
em ficar ali de bobeira, rodeando os mestres.
Confesso que foi um susto e um perrengue constatar um belo
dia, que haviam decepado a mão de Pedro. A mão que descansa em cima do livro.
Meu amigo, ainda que maneta, continuava impávido, imperturbável. Mas eu me
afligi: como é que ele iria escrever se lhe levarem a mão direita?
Seria uma premonição o seu poema
“Quando morto estiver o meu corpo!”.?.. “Descubram minhas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, o que fizeram, em que sexos
Demoraram seus dedos sabidos?”
Uma prótese
foi providenciada. Final feliz. Apenas um acidente de percurso. Pedro deve ter
se divertido; nada como ser baleado quando erram o tiro. O mundo voltou aos
trilhos. Mas suas mãos, onde andaram?
Pois dia desses, quando passei pela dupla novamente me
assustei com a falta de algo. Dessa vez foi meu amigo Carlos que ficou maneta.
Quase não se nota. A mão direita estendida ao longo do corpo, quase escondida
embaixo da manga do paletó sumiu. Outra vez .
E é a mão direita. E eu me lembrei: “tenho apenas duas mãos e o
sentimento do mundo”.
Quem é que rouba a mão de um grande poeta? Alguém que tenta
roubar suas palavras? Alguém que inveja seu talento? Alguém que se preocupa que
aquela mão imóvel por tanto tempo possa sofrer da famosa câimbra incapacitante
do escritor?
“Tenho apenas duas mãos”. Não, mestre, agora só tem uma, a
outra foi decepada como a do compositor Victor Jarra, mas não se preocupe, não
há como roubar ideias, inspiração, talento, e todo o sentimento do mundo.
Maria Solange Amado Ladeira
- 30/04/2019
www.versiprosear.blogspot.com.br
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