A bibra






A “Bibra”
Solange Amado
Minha faxineira chega atrasada e se justifica: Foi ao Banco conversar com o gerente. Fizeram um “empréstimo indignado” na sua conta. Não é novidade. Todo mundo faz empréstimos “indignados” na sua conta. Filhos, netos e quem mais chegar. Pergunto aonde ela guarda o cartão do Banco. Em uma caixinha perto da sua cama. Colado ao cartão, com um clipe, um papelzinho com a senha. Faca e o queijo. Todo mundo se locupleta.
Não é falta de aviso. Eu gasto a minha prosopopeia, como dizia minha mãe. Ela não dá a mínima. Afinal, eu tenho as minhas “inguinoranças”. Tirante Deus, só o pastor merece crédito. A Igreja é o centro do seu mundo. Mas eu e o pastor somos antagônicos. Ele nada de braçada ao interpretar a Biblia. Não sei se por ignorância ou esperteza. E o mantra que encerra  qualquer pendenga é: “a Bibra diz”. Se a “Bibra” diz, eu, uma pobre mortal “inguinorante  diante de Deus”, não tenho nenhuma chance.
Mas eu resisto. Sei que a “Bibra” (ou o pastor) proíbe que ela use calça comprida. E no frio de julho,manhã cedinho, ela se queixa de que as pernas estão “fovêras”” Duas estacas geladas. E lhe dou uma calça jeans bem bonitinha. Ela recusa.  Reza a “Bibra” que ela não pode usar calças. Só homens usam calças. Então ela coloca uma calçola, uma bermuda, uma anágua e o vestido por cima. Pergunto o por quê da bermuda. Uai! Se subir em uma escada, o patrão não vê as partes dela. E se cair ao descer do ônibus (já aconteceu com a vizinha), periga “insibir” suas partes para o mundo. Argumento que isso é conversa fiada. No tempo de Jesus, os homens usavam túnica. Tecnicamente eles se vestiam de mulher. Não conheciam calças. Ela não se abala. “Isso é no velho testamento, no novo já existiam calças”. Estão tá então. Vou presa assim mesmo.
Mesmo argumento com a proibição de ver televisão. No tempo de Cristo, nem se sonhava com esse aparelho. De onde é que vem essa proibição bíblica? Aprendo que no velho testamento não tinha televisão, mas no novo elas já estavam lá, firmes.
Seja lá o que for, ela me pede pra ligar a TV no programa do Datena, aquele do “põe na tela”. Eu ponho, mas antes observo: “Uai! Mas você não pode ver TV!” E ela: “a proibição é de ver, não de ouvir”. E rola a maior malandragem. Volta e meia eu a surpreendo com a vassoura na mão, olhando “sem querer” o desenrolar das desgraças na tela. O jeitinho brasileiro de obedecer a “Bibra”.
Uma única vez eu a vi encarar o pastor e seus preceitos bíblicos. Sua filha mais velha é gay. Uma única olhada e fica claro pra qualquer um. Mas mãe é mãe. A filha foi morar com a namorada dentro de casa. E mesmo assim, ela se recusou a enxergar. E já que Maomé não vai à montanha, a filha resolveu abrir o verbo. Foi um Deus nos acuda! O pastor mandou expulsar as duas de casa. Estavam vivendo em pecado.
Foi um chororô de mais  de uma mês seguido. Envidei todos os esforços. Gastei todo o meu latim “inguinorante”.
Gosto de pensar que, pela primeira vez, ganhei da “Bibra”, quando ela disse ao pastor: “Pelo sangue do Senhor. Eu não vou expulsar ela de casa. Mãe não abandona filho. Ela pode estar vivendo em pecado. Mas Deus nunca abandonou um pecador”. Foi uma solução meia boca. Ela expulsou “a outra” . Mas já foi um passo.
Não deixou de ser um direto no queixo do pastor. Lavei minha alma. Mesmo assim, continuo botando as minhas barbas de molho. Eu também estou condenada às penas do inferno porque eu sempre digo que a velhice é uma merda. Não pode. Atrai desgraça.
Não sei se é do novo ou do velho testamento, mas a “Bibra” diz que a velhice é uma benção. Quem sou eu pra fincar pé e viver em pecado.





Maria Solange Amado Ladeira     01/10/2019
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