História de Detetive



História de detetive
Solange Amado
Tudo bem. Linhas retas em literatura são uma péssima pedida. E ela é um pau que já nasceu torto. Quando escreve em linha reta, sai um texto convexo, sem nexo. Bêbado de vinho ou champagne. Não combina com ela. Sua criatividade está mais para um porre de cachaça. Vive melhor na marginália, na periferia. Está convencida disso.
Não se sabe por que, costuma deixar que seus personagens trilhem seus próprios caminhos com certa liberdade. Não diria assim com total independência. Talvez uma interdependência, pro texto não virar bagunça. Nesse ponto, concorda com Jorge Amado: Uma vez, Zélia Gattai, sua mulher, que passava a limpo os rascunhos de seus romances, percebendo que uma de suas personagens, uma menina chamada Noca,  ia morrer, suplicou a Jorge que a livrasse desse destino. E Amado replicou: “Não posso fazer nada. Sou o autor da história, mas a vida e a morte pertencem aos personagens”.
É mais ou menos isso. Quando ela resolve escrever, começa bem; pensa que tá indo em linha reta, que vai economizar tempo usando a menor distância entre dois pontos. A intenção é boa. Mas aí, tem sempre um personagem que bagunça o coreto. E se o calor estiver muito brabo, ela pode perder totalmente as rédeas, porque todos sabem, não é novidade: escrever é esporte de alto risco. Mesmo um atleta de ponta tem seu dia de mingau. Na primeira curva a coisa toda pode ir pro brejo.
E se até morrer, a gente morre de improviso, não carece de enfatiotar muito a escrita. Terno e gravata ela dispensa. Só veta chinelo de dedo, não se sabe por quê. Talvez pra não fazer da sua escrita um baile funk.
Visto isso. A escritora botou na cabeça de desovar uma história de detetive. Na primeira cena, ela estende um corpo em decúbito dorsal na biblioteca. E se arrepende de imediato. Total falta de originalidade. Truque manjado de Agatha Christie. E na casa da escritora nem tem biblioteca. A não ser que três estantes atulhadas num quartinho de fundos possa ser caracterizado como biblioteca. E no espaço não cabe o corpo da vítima. Ainda bem que num romance policial, a vítima é o que menos interessa. Se já morreu mesmo, melhor focar no detetive. Aí sim, pode deitar e rolar. Na verdade, não lhe agradam os elegantes detetives da CIA ou do FBI. Seu detetive, ao contrário, bebe demais, é gordinho, sua muito e usa métodos muito pouco convencionais. Levando-se em conta que a escritora também não é lá uma Madre Tereza de Calcutá, esse detetive cabe que nem luva. Digamos que é um Sam Spade tupininquim. Dashiell Hammett poderia dizer que ela está copiando seu famoso personagem. Mas ninguém hoje sabe quem é Dashiell Hammett, nem a escritora Lillian Hellmann, sua mulher. Então, o Sam Spade fica.
Corpo posicionado no quartinho dos livros. Sam Spade do terceiro mundo a postos, faltam descobrir o assassino e o motivo. Dizem que quase todos os assassinatos são descobertos quando alguém dá com a língua nos dentes sobre outra pessoa.. Mas cadáveres não falam. Sem chance de ele contar. O motivo? Sam Spade não acha que o motivo  possa ser sexo. Não dá muito ibope hoje em dia.  Bingo pra quem pensou em poder. Elementar, meu caro Watson.
Pois é. A escritora já tem em mãos um crime,  uma vítima, um detetive, um motivo. Faca e queijo nas mãos pra conseguir sua história policial ou political.
Mas aí é que a porca torce o rabo. Ela sabe que em toda história de detetive tudo acontece de fato é nas entrelinhas.
É aí que vem a Clarice Lispector e bota água na fervura: “já que se há de escrever, que pelo menos não se esmague com palavras as entrelinhas”.
Bateu insegurança. Melhor não arriscar. Insegurança é um trem brabo. Vai que ela condena um inocente?






Maria Solange Amado Ladeira      -      16/04/2019
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