Nabuco
Solange Amado
Nabuco já anda de saco cheio, de ver, de ouvir e de ser o
confessionário de Padre Pedro. Já anda de saco cheio de ter de latir
alegremente, dar pulinhos, arranhar a batina e arfar com entusiasmo borbulhante
à chegada de Pedro e da mulherada que está sempre rondando batinas e
confessionários. Saco cheio de ouvir reclamações, pecados de beatas, diga-se de
passagem, de uma monotonia infindável.
Nabuco deseja mesmo é um pecado suado, desembestado, desgovernado, imperdoável e sem juízo. Nabuco
quer algo que não seja previsível, como o que fareja debaixo da batina de Padre
Pedro.
Nabuco quer algo sujo, o esqueleto no armário, que todo mundo
esconde a sete chaves dentro de si. E quer que tudo seja transparente.
Ah! Meu Deus! Se tivesse a chave da falta de decência que
mora sob o sol morno da beatice, podia escancarar a vida, se sentar no camarote
de honra e assistir ao delirante
espetáculo dos desejos escapulidos de tanta moderação e decência. Aí sim, seria
o Nabuco no buraco virgem das possibilidades da sem vergonhice.
Nabuco tem vivido sua vidinha medíocre sempre na coluna do
meio da sacristia. De lá, só fica botando reparo na vida dupla dos humanos. A
perversão sempre escondidinha no guarda-roupa.
Há muito já sacou como funcionam esses “animais racionais”. E
Nabuco alí, doidinho para botar a boca no trombone. Sorte deles que humanos não
entendem latidos. Ou não querem entender. Esse fingimento dos humanos dá
brotoejas a qualquer cão que se preze.
No domingo, ele vê todo mundo batendo no peito. Durante a
semana, todo mundo come todo mundo. Como diz o filósofo Leandro Karnal, “o medo
enche, historicamente, mais Igrejas do que o amor”. Padre Pedro furunfa com o
sacristão. A mulher do prefeito arrasta asas para o farmacêutico, que tem olhos
compridos para a filha do vereador Simplício. Por sua vez, o prefeito finge de
bobo. Seu negócio é superfaturar as obras da Prefeitura e fazer discursos
hiperbólicos mostrando as obras de melhoria para os pobres, melhorias estas,
das quais eles nunca vão sentir nem o cheiro. E desde que todo mundo feche os
olhos, está tudo bem. Na política o problema não é ser, é parecer.]
Só tem um problema. Nabuco está de saco cheio. Não entende as
susceptibilidades do mundo humano. Seu mundo é mais simples. É ou não é. Outro
dia mesmo, resolveu namorar em plena Santa Missa aquela cadelinha gostosa da D.
Francisca do açougue. Foi sexo consensual, mas escandalizou aquela cidade
fingida. Feriu o senso podre de recato
que eles pensam que têm.
Mas Nabuco é voto vencido. Seus protestos caem em ouvidos
moucos. Ninguém quer saber da realidade. Inútil. No mundo dos humanos, somente
a má-fé remove montanhas. Melhor desistir. Nabuco sabe que os humanos se protegem do real debaixo do enorme
guarda-chuva da normalidade.
Nabuco está de saco
cheio, mas se às vezes lhe ocorre perguntar: “O que faço com isso tudo?” Como é
um cão letrado, sabe que deve responder como Saramago: “Continuar-me”.
Maria Solange Amado Ladeira -
12/03/2019

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