Eli Eli lama sabachthani



Eli Eli lama sabachthani!
Solange Amado

As férias se foram. Ela não viu. Estava com o nariz enfiado num livro. Foi de lá que ela viu os ecos do mundo lá fora. A lama escorreu e passou pela porta. Na verdade, já há muito ela atravessa o seu caminho. E já suja seus pés desde que se entende por gente, ainda que metaforicamente. Ficou triste.
Tem gente mais feliz, que pensa que a lama chegou domingo, ou há três anos. Felizes os puros de espírito! Deles será o mundo, ou a vida eterna, ela não sabe bem. Não é muito versada em puros de espírito ou em vida eterna. Mas a lama, toda a sua vida se deparou com ela.
Os puros de espírito pensam que a lama pertence ao outro. Não tem lama no seu terreiro ou no seu jardim. Eles só ficam do lado de fora sacudindo a cabeça e apontando o dedo para aquele porco cuja descarga vaza e afoga toda a sujeira que se acumulou ao longo dos anos e desmorona tudo à sua volta.
Ele chegou agora. E há séculos a lama vem varrendo esse Estado, esse país, esse mundo. Não obstante, ele permaneceu limpo. Até agora.
O telefone toca. Ela abre os olhos sonolenta. O dia nem amanheceu direito. Quem seria? A voz do outro lado é vagamente conhecida. Lentamente reconhece sua amiga Fátima. Difícil o reconhecimento. Há anos não fala com ela. E a voz é lenta, baixa, angustiada. A última vez que se esbarraram foi no casamento da amiga. Anos atrás, numa casinha pobre, à beira da estrada, em frente ao sítio onde costumava ficar, lá no Gongo Soco. Foi a fotógrafa improvisada do evento, que não teve nem um vestido de noiva, sonho da jovem, porque a grana era muito curta. Mas o almoço foi farto e teve até até um porquinho morto para a ocasião e a vila inteira compareceu no acanhado terreiro. Com todas as dificuldades, foi um dia feliz.
As lembranças a invadem. As águas limpas do rio, passando cantantes entre as pedras, lambendo os pés, peixinhos saltando e fazendo cócegas nas pernas. Por anos, usufruiu dessa sensação boa, na prainha, debaixo do sol quente. Até que um dia, o rio ficou turvo, feio, barrento. Não dava nem pra botar os pés. Foi o sinal. Os peixinhos morrendo, o cheiro acre, o rio agonizando. E os moradores da vila informando resignados: “é o minério”. Não se pode fazer nada.  O minério ameaçando a criação, sua horta, suas galinhas,  seu verde, sua paisagem, sua paz, sua luz, sua voz, seu violão em noites amenas, quando se reuniam, cadeiras em frente à varanda , os grilos acompanhando o canto. E as muriçocas se fartando pelas pernas, que ninguém é inteiramente feliz. Tinha também o trauma das pererecas no chuveiro no meio do banho e o esquadrão caça-pererecas passando um pente fino pelo banheiro, antes que os menos corajosos se arriscassem a um banho quente. Mas... Ah! Pererecas e muriçocas nunca conseguiram empalidecer o luar, o vento entre as folhas, o silencio, a jabuticaba no pé, a sombra da mangueira. Afinal, a natureza também tem o seu preço.
A voz do outro lado treme, chora, some aos poucos na angústia dos que não conseguem ser ouvidos. Não sabe quando vai voltar à sua casa. Não sabe quando poderá retomar a vida e o seu pedacinho de terra, comprado com sacrifícios infinitos, que, conforme o chefe de família informou: “ o “portoga” (vulgo topógrafo) já veio, fez as “medição toda” do terreno. E pronto. É nosso. Se Deus quiser, até morrer”. Esse paraíso é seu, por toda a vida. Ou, até que a lama o destrua. Possibilidade que jamais passou pela sua cabeça.
Do outro lado do fio, a amiga chora. Um choro contido, solitário. Será que pelo menos Deus está ouvindo?  Seu desespero lembra o de Cristo, na cruz.: “Eli Eli lama sabachthani!”. “ Meu Deus,  Meu Deus, Por que me abandonaste?”







Maria Solange Amado Ladeira                         26/02/2019

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