Incronicável



Incronicável
Solange Amado
A tia se encontra numa bananosa. Tem de construir uma crônica. Mole pra nós, pensa. Simples e fácil.  Seria, se o Zuenir Ventura já não tivesse     advertido:           “Nem tudo é     cronicável”. Não há garantias, mas vale tentar. Deve ter algum assunto por aí que agrade ao Zuenir.
Liga a TV. Todo mundo atira em todo mundo, em Igrejas, colégios e ruas. No Brasil, na Nova Zelândia, na França, na Espanha, os EEUU.Neca. Não se anima. Muda o canal. Um sujeito barbudo se diz D. Quixote, lutando contra os moinhos de vento. E já apareceram um tanto de Sancho Panças. Seria cronicável? Duvida. Quando trabalhava em Hospitais Psiquiátricos já se deparou com muitos Jesus Cristos e Napoleões. A concorrência é feroz. Melhor descartar.
Durante o carnaval, foi visitar um casal de amigos, que se mudou recentemente para um baita apartamento. Belo saguão, elevador privativo e ela deságua dentro do apartamento. É recebida festivamente por um cachorro, mais parecido com um bezerro. O cachorro mete as patas no seu ombro, a abraça forte, e arfando tenta cruzar com ela. Pânico total, até os donos da casa a livrarem do pesadelo: “ele é bonzinho, não costuma fazer isso”. Durante o resto da visita, o cão não desiste do assédio. Caramba! Ele não entende que NÃO é NÃO. Será que esse ato sórdido seria cronicável?
Desconfia que o calor derreteu o seu”animus escrevinhanti”. Então, resolve ir ao cinema em plena tarde de quinta-feira. Alguém recomendou um filme sobre um cachorrinho que é separado do seu amo, e leva dois anos atravessando meio Estados Unidos para voltar aos braços do dono. Um balde de lágrimas depois, vem o happy End.
Na porta da padaria, um morador de rua está num momento tórrido de carícias e beijos na boca com seu cachorrinho de estimação: “depois eu vou lhe dar uma carninha pra você ficar bonito e fortão”!  A tia se comove.
Dentro do cinema, sem pipoca ou coca-cola, ela é a única expectadora.  O que já não promete muito. Apagadas as luzes, ela se instala, puxa um lenço para as lágrimas e então entra mais um expectador. Um homem alto, enfiado num casaco preto, num calor de cão, e enormes botas militares. Contra a luz da tela, ele parece um Rambo tupininquim. Para e olha em volta com as pernas semiabertas. Só falta sacar a metralhador a e a tia parte dessa para melhor.
Com mais de 300 lugares para escolher, nosso Rambo escolhe um lugar na fileira de trás da senhora idosa. E coloca suas enormes botas militares no encosto da cadeira da frente. Bateu a maior paranoia. O resto do filme, ela divide a sua atenção entre o xarope do cachorrinho na tela e as botas do Rambo ao seu lado.
Lá no filme, o animal passa uma fome serena, sofre todos os maltratos e não emagrece nem uma grama. Deve ter seu DNA, pensa a tia mal humorada. E ela acaba abandonando o cinema antes do happy end. Seguro morreu de velho.
Até hoje, ela está se perguntando se um filme ruim, um falso Rambo e um calor lazarento seriam  cronicáveis. Não sabe, mas o Zuenir Ventura que a perdoe. Há controvérsias.





Maria Solange Amado Ladeira            19/03/2019
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