Hermengarda
Solange Amado
A primeira vez que a vi foi num domingo. Eu saí do chuveiro e
ela estava enrolada na minha toalha de banho. No mínimo uma indiscrição
grave.Além do susto, só consegui pensar na famosa piada do papagaio, que se
trancou no banheiro e quando botaram a porta abaixo, encontraram o bichinho
indignado, com as asinhas apoiadas na cintura: “Imaginem se eu estivesse
pelado?”
Pelada eu já estava. A indignação era pelo uso indevido da
minha toalha e do meu banheiro por uma moradora de rua que não foi convidada.
Como ela entrou ali? E por que eu?
E ela ali; Nem te ligo. Só a cabecinha do lado de fora da
toalha. Olhinhos arregalados, me fitando, enquanto eu pensava na melhor
estratégia para confrontá-la.
Não precisou. Ela estava mais apavorada do que eu. Tão
apavorada que não hesitou em fugir pela janela do décimo primeiro andar. Uma
fuga suicida, que na verdade, não me preocupou muito, de vez que lagartixas
podem andar nas paredes e no teto, sem andaimes que as protejam.
Caso encerrado, pensei. E pensei errado. Volta e meia nós nos
esbarramos em lugares os mais insólitos. Hermengarda, como eu a batizei, é uma
lagartixa fora dos esquadros. Não gosta de tetos ou paredes. Não é fã de
altura. Eu a vejo só em terra firme. Acho que ela compartilha da desconfiança
da dona da casa por objetos que voam. Janta todos com aquela língua grande. Ou
talvez seja uma tagarela. Mas como dizem os italianos: “non si può perseguire
nessuno per scorrettezza política”. A gente perdoa essa incorreção política.
Dia desses, quando fui tomar um copo d´água na cozinha, no
meio da noite, ela surgiu detrás do armário e me desafiou.
Já descobri seu esconderijo preferido: é na estante, atrás
das “Obras Completas de Freud”. Fiquei contente. Podemos trocar figurinha. Não
sei o quanto ela já leu.Ou se lê bem em espanhol. De qualquer maneira, ela não
está propensa a discutir nada. Sou eu que tenho esse sonho biruta de trocar ideias com uma lagartixa. E
que ela me dê respostas. Essa incerteza solitária é tão difícil!...
Às vezes eu me sento lá e conto as minhas dúvidas. Sei que
ela está escutando atrás do volume XI, Totem e Tabu. Mas finge que não se
interessa. Quer que eu me vire sozinha. Ela me é importante. Afinal, vê sempre
o mundo de cabeça pra baixo e eu não posso vê-lo dessa perspectiva.
Tenho medo de que essa vidinha estreita acabe cansando a
Hermengarda e ela me abandone.
Já falei pra ela que também tenho uma língua apurada, às
vêzes também subo pelas paredes, e como mosca todos os dias. Há muitas
semelhanças entre nós. É só deixar as desconfianças de lado.
Não obstante, tenho esperanças. E medo dessa nossa amizade
destrambelhada. Explico.
Em 1934, o poeta russo Ossip Mandelstam foi preso, torturado
e morto pela NKVD, a polícia política da União Soviética, porque homenageou
Stalin com versos falando “dos enormes olhos risonhos de barata de Stalin”.
Pagou caro essa “scorrettezza” política.
A Hermengarda tem esses olhos stalinianos. Mas não é Stalin.
É uma lagartixa. E é brasileira. Eu também. Graças a Deus. Daí minha esperança.
www.versiprosear.blogspot.com.br
12/02/2019
Maria Solange Amado Ladeira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário