Politicamente incorreto



Politicamente incorreto
Solange Amado
A tia vai a um almoço natalino com a família. Leva uma caixa de trufas para cada um dos sobrinhos pequenos. O garoto de cinco anos, maluco por chocolate, logo arrebita a tanga, mas a mãe intervém severa: “Chocolate só depois do almoço. Como sobremesa!” O garoto vê que é inútil discutir. Senta-se obediente, almoça antes de todo mundo, numa velocidade supersônica e com péssimas intenções. Estende o prato vazio e grita: “Agora é a sobremesa, né?” A mãe aquiesce. Excitado, ele para diante das caixas de trufas e exclama: “Qual é a minha?” Qualquer uma, foi a resposta. Ele afere com muito cuidado peso e tamanho e some com uma delas na mão.
O papo à mesa continua animado. Todo mundo bebe, come e dá palpite na vida dos outros alegremente. Cerca de meia hora depois, o garoto retorna à sala. Entrada triunfal. Feliz e absolutamente lambuzado. Roupas imundas. Numa das mãos traz uma caixa de trufas vazia e lambe os dedos sujos de chocolate.
A mãe se desespera: “Meu filho, mamãe já lhe disse um milhão de vezes, chocolate é para ser comido com parcimônia, pouco e devagar. É gostoso sim, mas chocolate é porcaria!” O garoto olha pra ela muito sério e diz: “Mas mamãe, a vida sem porcaria não tem graça nenhuma”.
“Esse é o meu garoto!” A tia concorda em gênero e número! Ela já anda cansada do politicamente correto. Já não se pode mais contar piada de gordo, de velho, de gay, de mulher e vai por aí que a lista é interminável e a patrulha ideológica tem um sem número de regras a serem respeitadas. E ainda tem a patrulha alimentar. Não é de bom tom comer uma caixa de trufas e dar colorido à vida. Sangue de Cristo tem poder!
Batatinhas fritas à parte, a tia deu de ser politicamente incorreta e a família pega pesado: “você vai com ESSA roupa?”, “Uau! Esse sapato tá prontinho pra caridade!”, “um armário cheio de bolsas e você inverna numa bolsa só!”
Dia desses, a coitada da tia resolveu sair do modelito “refugos da caridade”. Desovou algo mais correto do guarda-roupa e trocou de bolsa. Espalhou o conteúdo da velha bujaca na mesa: sombrinha, batom, boleto de IPTU, canetas, documentos, cartões, bilhetes, moedas, fio dental, escova de dentes, um texto inacabado num pedaço de papel, uma bala e um biscoito esquecidos naquele buraco negro. Dir-se-ia uma caixa de pandora. A transferência de uma bolsa pra outra não acabava mais.
Foi quando o telefone tocou. Ela já estava atrasada. Atendeu às pressas e despachou mais um plano de saúde. Catou a nova bolsa e saiu correndo.
Pegou um táxi e se perdeu no papo com o jovem motorista. Chega ao destino e cadê a carteira? Impasse. Nenhuma esperança de encontrar alguma nota escondida nos desvãos da nova bolsa. Tudo no seu devido lugar.
A solução foi pedir dinheiro emprestado ao porteiro do edifício que nem é o dela. A tia se desmancha em desculpas. Velha é assim, esquecida, distraída, etc. e tal.
E aí o jovem diz: “Não precisa se desculpar, dona. Eu tô pior do que a senhora. Ontem, morto de fome, parei o carro em local proibido, comprei um pastel e voltei pro carro.Trazia o celular na mão esquerda e o pastel na outra mão. Aflito com a buzinação atrás de mim, arranquei o carro de qualquer maneira, e aí botei o pastel no porta-luvas e dei uma dentada tão grande no celular que quase quebrei o dente!”
O garotinho filósofo tem razão. Bom mesmo é se divertir com uma boa piada, uma bela gargalhada e se lambuzar de trufas. Morder a vida com vontade e dar uma boa banana para o politicamente correto. Sabe-se lá se acaba hoje?


www.versiprosear.blogspot.com.br                 05/02/2019
Maria Solange Amado Ladeira

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