Eu avisei



Eu avisei!
Solange Amado
Acordo e ligo a TV. Ainda estou entre o sonho e a realidade. Na preguiça do limbo, protegida do inferno do real. Vai ver, eu já morri. Mas a TV me arranca desse crepúsculo ajardinado: dólar baixou, Israel vai botar água no nordeste, os políticos vão tomar vergonha na cara. Eu não falei? Por sua vez, Hitler vem aí, entre outras coisas, o exército  vai pras ruas matar os cidadãos de bem e não vamos mais poder falar mal do governo. Nossa educação, que sempre foi de primeiro mundo, vai virar sucata. Eu não falei? Todo mundo coberto de razão. Ferreira Gullar já disse: “não quero ter razão. Eu quero ser feliz”. Mas ninguém dá bola para o que ele fala. O importante é que eu avisei.
E aí, no macio da minha cama, me lembrei da psiquiatra Nise da Silveira. Só pra refrescar a memória, Nise, discípula de Jung, revolucionou o tratamento de portadores de sofrimento mental (só pra eu ser politicamente correta) no Brasil, na década de 80 e 90. Humanizou o tratamento dessas pessoas, aboliu a eletroterapia e a insulinoterapia do seu hospital e criou ateliers onde estudava o inconsciente  dos internos através de suas pinturas e desenhos, principalmente as mandalas.
Nise gostava de contar o seguinte caso, que se não fosse trágico seria cômico: lá pelos idos de 1800, não havia nenhum tratamento para doentes mentais no Brasil. No Rio, eles eram recolhidos pelas ruas e trancafiados em condições subumanas no porão da Santa Casa de Misericórdia, sem nenhum tratamento, como se fossem animais. Era o inferno de Dante.
Em 1841, o Imperador D. Pedro II resolve fazer uma visita à Santa Casa e ficou horrorizado com os gritos desesperados vindos do porão. O Imperador, sensibilizado, vai pra casa e assina um decreto criando o  Hospital Psiquiátrico que levou seu nome, no  Bairro da Urca, que ficou logo conhecido por Hospício da Praia Vermelha. Uma construção luxuosa, estilo neoclássico, logo apelidado também como “Palácio dos Loucos”. Em 1852, D. Pedro inaugura o elefante branco. Festança pronta, discursos ensaiados, beija-mãos, rapapés, bebidas, comidas, limpeza. Tudo impecável.
Faltando menos de duas horas para a chegada do Imperador, alguém bate na testa: “Meu Deus! Cadê os loucos?” O cerimonial não havia pensado nesse pequeno detalhe. Alguém é enviado na correria ao porão da Santa Casa. A missão é enfatiotar alguns birutas para receber o Imperador. Conseguiram aprontar nove criaturas. Segundo a lenda, dos nove, dois eram efetivamente malucos, o restante era de prostitutas, retirantes, mendigos, etc. E eles adentraram o Palácio inteiramente boquiabertos, sem terem a mínima noção do que estava acontecendo. Pronto! A pátria estava salva!
10 anos depois, esse palácio neoclássico, superpovoado, já estava em petição de miséria. Uma loucura. Sem pleonasmos. E continuou assim,  quando um século depois, Nise da Silveira foi trabalhar lá. E tentou bravamente mudar o foco das atenções.
Pois é. Vendo o noticiário, penso que o Brasil é esse biruta, que é só um detalhe. Tudo é feito em nome dele, mas ele não existe. Mora em condições promíscuas no porão da Santa Casa de Misericórdia. Em nome dele, tantos discursos, rapapés, salamaleques, conchavos. Todo mundo querendo aparecer no santinho. Todo mundo cheio de razão.
Todo mundo tem uma bolinha de cristal e sabe exatamente o que vai acontecer. Os arautos do apocalipse  juram que tudo vai virar mingau. A outra metade pensa que somos alguma sucursal de Lourdes ou de Fátima. Milagres são esperados com todo o fervor para os próximos anos.
Eu, por mim, daria só um palpite. Carece de abrir o porão da Santa Casa. E depois a gente conversa.





Maria Solange Amado Ladeira               13/11/2018
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