Inspiração,desesperação



Inspiração, desesperação.
Solange Amado
Todo mundo sabe que ela fala sozinha. O que não causa nenhum frisson.  Quem não fala sozinho hoje, deve ter um parafuso solto. Deve acumular um bocado de energia sem saída. Um dia, vai estourar que nem vulcão despertando de súbito. Além do mais, em tempos de patrulha ideológica, a pessoa não corre nenhum perigo falando consigo mesmo. Fica tudo em família.
Ela também não tira o som do rádio ou da TV porque o aparelho pode estourar. Nunca se sabe. Pode ficar um acúmulo de palavras presas ali e o aparelho pode enlouquecer.
O que ninguém sabe é que ela também tem medo de ser comida por um jacaré. Jacaré come gente. Verdade que jacaré vive na água, não dentro de casa. Mas isso é só um detalhe. O medo é dela, o jacaré é dela. Não é um jacaré ecologicamente correto e vive fora do seu habitat. É um jacaré que vive nos seus pesadelos. Ninguém controla. Todas as noites, ela procura embaixo da cama se o bicho está ali escondido. Nunca está. Mas deveria. Então, onde ele está escondido? E ela não dorme. Vamos que o jacaré a surpreenda assim do nada.
Acontece o mesmo com as palavras. Como o jacaré, as palavras andam por aí. Quando a gente menos espera, elas abocanham a gente. Não se pode bobear. Então, nada de dormir. Picasso tinha essa preocupação quando dizia: “espero que quando a inspiração chegar, me encontre acordado”. A moça é precavida. Se a inspiração chegar, quer estar alerta. Ela não é nenhum Picasso. A inspiração dela não é assim essas Brastemp. Mas não se pode desprezar inspirações quando elas batem na porta. Elas não caem assim do céu por descuido de São Pedro, tão frequentemente.
De mais a mais, medo não é uma coisa muito aconselhável. O medo paraliza, congela. Mas vamos e venhamos, ter de enfrentar um jacaré todos os dias não é pra qualquer um. E caçar as ideias, as palavras, quando estas teimam em se esconder da gente, é coisa pra Super-homem literário.
Essa brincadeira de esconde-esconde é estafante. Semana passada, a moça resolveu jogar a toalha. Pediu arrego. Não vale o esforço. É muita vela pra pouco defunto. Suas palavras não são tão feéricas que valham a pena.  Decisão tomada no desespero, ela viu na TV um escritor português dizendo que leva 3 ou 4 anos pra escrever um romance, mas que seus editores compreendem essa peleja com a inspiração. Caramba! Ela não tem todo esse tempo! Mesmo porque, sofre  da mais nova patologia do pedaço: a  Síndrome do Pensamento Acelerado. O tempo ruge, como diria o leão. E é sabido que os portadores dessa síndrome não têm paciência com coisas e pessoas lentas.
E a inspiração é lenta. Mais lenta do que um parto encalhado. Inspira, respira, transpira. Um dia inteiro nessa peleja e a gente só consegue ver a parte de cima da cabeça de uma ideia que vem surgindo. Talvez nasça essa noite, quem sabe, com necessidades especiais, abaixo do peso ou feio que nem a mãe do sarampo. E é preciso encarar. Só não pode demorar 3 ou 4 anos. A moça tem menos de uma semana. A tarde de terça-feira é o prazo final. Se a ideia não brotar, babáu.
Tudo tem um limite. Se o Espírito Santo não baixar até o fim da manhã, a moça põe a sua viola no saco e vai cantar noutro lugar. Tem roupa pra lavar, um tanto de vasilha na pia, tem um peixinho dourado que ela ainda vai comprar e que precisa ser alimentado e tem um armário inteiro  de livros esperando para serem lidos. Se a inspiração não vier, ela vai ouvir o “prelúdio para o cochilo do fauno”, de Debussy, que dizem, exorciza o jacaré da insônia. Larga de mão essa coisa de escrever.A fila anda, não dá pra esperar sentada.
A inspiração fica assim difícil,  porque já tá viciada em bajulação.  Todo mundo fica esperando por ela, ou não tem escrita. A orquestra não toca sem o maestro. Daí a pirraça.
Mas, definitivamente, a moça não vai suplicar e não vai esperar mais. Se não tem tu vai tu mesmo. Dá à luz um texto desinspirado, quiçá, desesperado. Mas é  um começo de conversa. Ou seria de desconversa? Ou só um texto perplexo, sem nexo?
Só pra mostrar que pode ser feliz sem ela.  Aquela mulherzinha caprichosa, mimada, histérica, distímica, inconstante chamada inspiração. Já deu!


Maria Solange Amado Ladeira    -       23/10/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br



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