Solange Amado
Não é que o amor seja cego. Ele é apenas míope. Sem óculos
não enxerga um palmo adiante do nariz. Vive meio assim no limbo. Não adianta
desenhar. O amor não reconhece essas firulas artísticas. Pode esfregar a
verdade na cara dele, pode botar o dedo na ferida, pode filmar passo a passo o
parto do chifre na testa. Neca. O amor segue impávido colosso. No máximo sofre
um pequeno bradissismo. Mas conserta as rachaduras e segue em frente maquiando
os possíveis estragos nas paredes.
Às vezes acontece, quando o oftalmologista receita uns óculos
de fundo de garrafa, se a criatura desavisada bota esse artefato na cara, o
casario desaba inteiro. O amor vira pó. Acontece. Quer dizer, de um modo geral,
o amor tem cura. É custoso. O tratamento é caro e demorado. Deixa sequelas. Mas
dá para empurrar a vida com a barriga. Dá pra juntar os cacos.
A coisa fica braba é com a paixão. Essa, nem os óculos, nem o
oftalmologista, nem cirurgia, nem colírio. Nada disso dá jeito. É doença
incurável. E só morre de morte matada. Ou indigestão braba. Porque ninguém
aguenta arroz doce em demasia. Sai pelo ladrão. Paixão é mortal. Essa sim, é
cega, surda, muda e paralítica total.
Pois é. Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa. O
amor, com a ajuda dos óculos pode viver, forte, firme, indômito, louco, lírico,
delicado, suave, gentil, misturando essas tintas pela vida afora. Paixão é
fatal. E vai em frente que nem um cego em tiroteio. Eu acreditava nisso.
A moça lê, reflete, critica e acredita em tanta sabedoria.
Mas vai presa assim mesmo. Um dia se apaixona. Cai de quatro. Diz que é amor.
Os pais providenciam a consulta com o oftalmologista, e os óculos de lentes
grossas. Mas a moça bate o pé. Os óculos só aumentam, só tornam maiores as
qualidades do amado. E ele toma conta do seu ser por inteiro. Não é um amor, é
um encosto. Ela só reflete o que o amado vibra. Dispensa os óculos. O amor é
lindo. E como resistir a tanta lindeza? Paixão é isso. É fanatismo.
A moça descobriu essa verdade rapidinho. Mas não precisou
pelejar muito com a paixão. Um dia o objeto dos seus cuidados abandonou o
navio, preferiu não ir à luta. A paixão morreu de morte matada.
E foi assim que as moça entrou no consultório. Doente de
amor. Esperando que eu lhe desse a receita. E quando se pensava que haveria um
longo processo de luto, ela resolveu quebrar as regras. Mergulhou de novo à
procura de pérolas no fundo do mar.
E como Vinicius de Moraes, escolheu viver perigosamente,
“nunca lamente nada que a tenha feito sorrir”. E tocou a vida em frente.
Aprendi que sentimentos não podem se enquadrar em qualquer
fita métrica. Muito, pouco, exagerado são só palavras. A vida é um perigo. O
amor, a paixão são perigosíssimos. E é preciso surfar nessa onda.
Aprendi com a moça, que se a vida é assim hiperbólica, então,
só nos resta alçar voo. Vai que dá certo.
Maria Solange Amado Ladeira 30/10/2018
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