Colcha de retalhos



Colcha de retalhos
Solange Amado
Havia sempre uma colcha de retalhos cobrindo a cama. Dizer isso é pouco. Todo o casebre era uma colcha de retalhos. Nada combinava com nada. Os móveis velhos da minha casa iam sempre parar lá. As cadeiras tinham todas as cores e feitios.  A sala se confundia com o quarto e com a cozinha.  E o banheiro era do lado de fora. Um buraco no chão, que eu, muito pequena, tinha medo de cair dentro. Sem stress. Tinha sempre um penico separado pra mim. Porque eu era visitante frequente.
Pela vida afora fiquei viciada naquela decoração desgovernada de cores e estilos. Não era uma bagunça. Tudo muito limpo, arrumado, dobrado. As coisas respeitando as pessoas e vice-versa. Paninhos de crochê refugados da minha casa ocupavam lugar de honra no fogão e na mesa minúscula, onde tinha sempre uma vasilha com biscoitinhos feitos por aquela vovó mãos de fada.
Ela era nossa lavadeira, passadeira, babá, faz-tudo de casa. Um caminhão de roupa pra dar conta.  Uma gargalhada que parecia o cacarejar de alguma ave e um receptáculo de histórias sinistras, que nos deixavam, a nós crianças, de cabelos em pé. Eu fechava os olhos e me aconchegava a ela pra exorcizar o meu medo.  Se mexessem comigo, aquela mulher franzina crescia e enfrentava os fantasmas. Era uma certeza.
Não tinha Disneylândia mais legal do que um sábado inteiro na casa dessa velhinha, que na boca tinha só um dente, desses de furar jabuticaba, bem na frente. O bônus do passeio era o rio que corria na frente da sua casinha. E entre o rio e a casa, havia uma enorme mangueira: nosso playground de inúmeras brincadeiras.  O calor infernal era amenizado pelo rumorejar da água que corria abaixo do barranco e a sombra generosa da gorda mangueira, que jogava manga pra nós o tempo inteiro e às vezes acertava a pontaria, bem na cabeça. E lá vinha o chororô.
Vida difícil. Tinha dor até no nome: Dorcelina. Mas não perdia o bom humor e a gargalhada cacarejante. Liberdade era isso. Um barraco pobre, com uma colcha de retalhos.
Lá eu podia tomar café. Na minha casa era proibido. Lá meu irmão podia subir no pé e jogar pra mim mangas quentes como o sol da tarde . E a gente se lambuzava com aquela iguaria venenosa pra muitos. Pés descalços e imundos, nos esbaldávamos com a criançada daquela ruazinha de terra, pegava piolho e uma coleção de vermes pela infância afora. Se eu tivesse sono, podia dormir em cima da colcha de retalhos, e meus sonhos se enchiam de pedaços coloridos. E tinha aquelas histórias arrepiantes. Se eu me afastasse muito, o capeta podia vir do matagal próximo e roubar a minha alma. O curupira ficava dentro do água e puxava a perna de quem ousasse entrar no rio. Nunca perdi minha alma e nunca ninguém puxou minha perna, porque eu não me arriscava tanto. Mas o perigo esteve próximo.
Todo esse cuidado não adiantou nada. Pela vida afora, tanta gente puxou a minha perna que ela foi ficando até meio prejudicada. E se eu bobear e ficar dando sopa no mato, o capeta chupa meu cérebro  e leva minha alma fácil fácil. E não tenho em quem me aconchegar.
E mais, naquele tempo era tudo preto no branco. Hoje eu não sei mais distinguir a agulha criminosa no palheiro dos inocentes.  Esse é o nó da coisa.. Não sei como me livrar dos fantasmas que puxam a perna e tentam levar a alma. A vida inteira virou uma colcha de retalhos.





Maria Solange Amado Ladeira                              06/11/2018
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