Solidão



Solidão
Solange Amado
Millor Fernandes já dizia: “Tudo passa: chuva passa, tempestade passa, até furacão passa. Difícil é saber o que sobra”. Pois é. Mas sobra. E temos que nos haver. Não com o que vai, mas com o resto que fica: uma xícara sem asa, uma panela sem tampa, um coração partido, um casamento pela metade, doenças, mortes, dores e a eterna incompletude. O vazio pelo que foi. A solidão. Ela, a solidão, é certeira. Não adianta espernear, se retorcer ou chamar a cavalaria americana. Ela até pode vir com armas e bagagens. Mas não vai adiantar. Os índios sioux estão dentro, não fora de nós. É com o que está dentro que temos de encarar o tsunami que nos assalta. É preciso que aguentemos a nossa companhia.É nisso que vou refletindo quando leio sobre Nureyev, aquele gênio russo da dança.
Nureyev tinha cabeça grande, pouco pescoço e pernas tortas, physique du role inteiramente errado para o balé. Mas o mundo é feito de possíveis impossibilidades. E foi assim que ele deu uma boa banana para as evidências. Removeu todos os obstáculos. E o preço a pagar foi a solidão. Deixou a família pobre no interior e foi pra Leningrado. Conseguiu entrar no prestigiado balé Vaganova a duras penas. Alí, entre outros perrengues, apanhou muito por ser gay, algo politicamente incorreto para a ideologia comunista. Então, espírito livre, Nureyev optou por fugir para o ocidente. Deixou para trás, amigos, família, sua pátria e sua língua, e uma carreira acorrentada pelo partido comunista. Deu bye bye à simpática polícia bolchevista  e foi viver sua opção sexual em outras paragens.
Fez um monte de bobagens e encantou o mundo com seu talento, em uma carreira meteórica. Foi incensado por todos os países em que andou. Ninguém nega nada a um gênio. Só a diaba da solidão se agarrava a ele com uma segunda pele.
Já no final da vida, morrendo de AIDS, conseguiu visitar a mãe muito velhinha na Rússia. Uma vida inteira de separação e de saudade. “Não me arrependo de nada. Foi uma escolha. A solidão faz parte”.Nureyev conheceu o paraíso da fama, da riqueza e do reconhecimento, e o inferno da doença e da solidão. A isso não temos como exorcizar. Podemos só amaciar essa pele incômoda que carregamos. Os amigos ajudam a empurrar o andor, mas cada um tem de escolher uma maneira  de conviver com o vazio e  a ausência. Conviver, não exorcizar.
Sei de mim que nunca consegui uma receita contra vazio, solidão ou ausência, mas pincei essa frase de um autor, Günter Crass, “aquilo que foi embora, só a escrita pode devolver”. É o que sobra. Serve mal e porcamente para mim. Não é muita coisa, mas dá pro gasto.
05/10/2018  Sarau na casa da Cida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário