O candidato



O candidato
Solange Amado
Ele era médico. Baixinho, gordinho, com  imensos olhos azuis e quase uma dúzia de filhos, ou melhor, filhas. Ele era o único homem naquele gineceu. E o único da família picado pela  mosca da militância política. Morava  vizinho ao colégio onde estudávamos e era sempre candidato a alguma coisa – vereador, prefeito, deputado ou síndico de alguma lugar. Sempre me lembro dele fazendo campanha.
Naquele tempo, “campanha” não era algo feérico como é hoje. E ele queria salvar os pobres do Brasil. Sem muito dinheiro na cueca, o candidato tinha de se virar  com o amor à pátria, alguns poucos comerciantes patrocinadores, fé no seu taco e no Brasil do futuro que, justiça seja feita, nunca sequer vislumbrou esse futuro, não obstante os esforços desses bons samaritanos. Era isso. Fé em Deus e pé na tábua.E haja sonho pra gastar!
Lá ia ele todos os dias, percorrendo bairros pobres, favelas, gastando saliva com a população local. Em cada casa, um cafezinho ou uma dose de pinga, aos quais, ele nunca se furtava, amante que era de uma cachacinha da boa. Beijava inúmeras crianças catarrentas, abraçava homens, mulheres e crianças, debaixo de um sol de 50 graus.
Voltava pra casa muito tempo depois, às vezes no meio da noite, trocando as pernas e enjoado com tantos cafés frios, fracos e com outros tantos ffs. Dir-se-ia um boêmio retornando à casa depois de uma longa noitada no bar. E eu me pergunto se havia alguma diferença entre o candidato e o boêmio para sua mulher e as inúmeras filhas.
Certamente, para mim não havia diferença. Quando passava por nós crianças, tinha sempre uma amabilidade distraída. Um afago na cabeça, um aceno vago e...FUI!
A gente (nós, os miúdos) não entendíamos muito bem, que diabo de trabalho era aquele. Todos os pais da turma eram normais. Saiam de manhã, voltavam à noite. Eram informados pelas nossas mães candongueiras dos nossos feitos durante o dia, e aí,  o chinelo cantava no lombo,  se tivéssemos violado um dos dez mandamentos que a autoridade paterna nos impunha. Naquela casa, com aquele pai-ET passando a mão na cabeça, o chinelo nunca cantava. Era uma beleza! Eu bem que achava isso injusto porque aquelas crianças pecavam tanto quanto eu. Ou mais. Vai ver, não havia tempo.
Não dava pra entender mesmo. Aquelas filhas eram meio despirocadas, meio autoritárias demais, aprontavam muito nas nossas brincadeiras. No fundo, no fundo, a gente achava que aquele pai tão complacente devia comparecer de vez em quando, com um chinelo ou um cinto pra botar ordem no terreiro. Injusto que só filhos de pais “normais” sofressem sanções.
O tempo passou. Crescemos. Começamos a manjar um pouco de ideologias de esquerda e de direita. O Brasil continuou o mesmo. Ainda é o país do futuro estacionado no hoje. Nosso candidato eterno teve o seu entusiasmo pela política cada vez mais minguado, ao contrário do seu entusiasmo por café e pinga.
Mesmo hoje, passados tantos anos, ainda acho que  faltaram chineladas.


Maria Solange Amado Ladeira      -     09/10/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário