Um dia de cão
Solange Amado
Tomo o ônibus errado. Fico enganchada na roleta. É claro,
desço numa rua incerta e não sabida. Tudo deserto. Não sei direito onde estou. É muito cedo. Posso ser assaltada a qualquer
hora. Viro algumas esquinas e alcanço a civilização. O dia promete.
Quase atingindo o recesso do meu lar, dou de cara com um
garotinho maltrapilho se debulhando em lágrimas. De repente, me sinto
magnânima. Os brutos também amam. A visão daquele menininho sujo e maltratado toca alguma corda lírica adormecida no meu
âmago. “O que aconteceu, meu filho? Está precisando de alguma coisa?” Sou toda
doçura. Ele levanta um rosto enfurecido e literalmente cospe as palavras : “Vai
tomar no c...!” De repente, já não me sinto tão magnânima. Caracas! O dia promete
mesmo!
Tropeço num buraco da calçada. E me estico inteira no chão.
Faço um inventário. Deus seja louvado! Nenhum ferimento. Imediatamente, algumas
mãos se estendem e me levantam cuidadosamente. Pessoas param. Alguém pergunta:
“O que aconteceu?” E ouço a resposta: “Nada. É só uma velhinha que caiu no
buraco”. Não falo, só penso: “velhinha é sua avó, seu fedapê!” Tenho vontade de
repetir a fala do garotinho chorão. Mas não o faço. Afinal, sou uma senhora
fina e educada, doida para mandar o mundo à merda.
O dia ainda promete mais. Entro no restaurante e faço o meu
prato.Sento-me num canto discreto, longe do burburinho. Preciso de espaço pra
digerir os últimos acontecimentos. Na mesa ao lado, senta-se um dos camaradas
mais bonitos que já vi na vida, um coroa em algum lugar entre George Clooney e
um deus grego. Ele carrega um casaco (fazia frio) e algumas pastas. Olha
insistentemente para mim.Tento imaginar se estou com roupas que me favorecem,
se o batom resistiu à minha queda na calçada, se meus olhos podem ficar mais
lânguidos e doces. Fico ansiosa. Meu olhar periférico capta o interesse do
gajo. Sei lá, a esperança é a última que morre! Crio coragem, seguro na mão de
Deus e também encaro a figura. É quando ele, educadamente, me diz: “será que eu
poderia pegar essa cadeira vaga na mesa da senhora e colocar minhas coisas?”
Sorrio. Tento desesperadamente me lembrar de que sou uma mulher fina. Mas só
consigo me lembrar da fala do menininho. Decididamente, hoje botaram merda no
ventilador.
Ainda tenho a metade do dia para enfrentar. Tenho um exame
pra levar ao médico. Chamo o UBER. Trânsito pesado. O motorista não vem. Chamo
outro, e justo quando estou quase entrando no carro vejo o outro motorista me
fazendo sinais desesperados. Estacionou do outro lado da avenida. A velhinha
aqui não enxergou. E foi multada pelo aplicativo. Despesa em dobro. Aplicativo é coisa do diabo!
Entro na sala de espera do médico. Ainda tem duas pessoas na
minha frente. Vai demorar. Tiro o meu kindle da bolsa e me entrego à leitura.
Paciência! É quando o doutor sai da sala dele e me chama.. Hesito: “eu?” Há
duas pessoas na minha frente. Mas ele insiste: “Você mesmo!” OK. Vai ver eu sou
a favorita do harém. Adentro o recinto e acontece esse diálogo estranho:
- “Onde está o exame?”
Entrego.
- “E os outros?”
- “Que outros?”
- Os que eu pedi.”
- “O senhor não me pediu mais nenhum.”
-“ Pedi sim. Eu sempre peço!”
Inicia-se uma queda de braços. Pedi! Não pediu!
Ele ameaça.
- “Olhe aqui, você não pode brincar com isso. Já teve um
câncer e tem de levar a sério...”
Mato a charada.
- “Desculpe-se doutor, nunca tive câncer, o senhor está me
confundindo com outra pessoa.”
- “Não estou não, Marina!”
- “Eu não me chamo Marina!”
Pra não ficar muito desmoralizado, ele me obriga a catar meus
exames desde 1822. E gastar mais Uber. Só assim ele joga a toalha.
O dia ainda não acabou. Saio de lá cuspindo marimbondo.
Foi aí que eu tomei o ônibus errado.
Maria Solange Amado Ladeira
- 21/08/18 -
www.versiprosear.blogspot.com.br
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