O improvável



O improvável
Solange Amado
Ele era poeta, pobre e pernóstico. E claro, só se via poeta e pobre. O resto era impressão  da plebe ignara, que ele não levava em conta, já que poetas são seres iluminados que pairam um pouco acima dos cidadãos comuns.
Não se tem notícia de que exercesse alguma atividade, mas sempre estava metido numa vibe de escrever versos. Não que os escrevesse com muita frequência. Ele se contentava em pensar poemas. E pensar já é um trabalho pesado. Ipso facto, era um proletário. Mesmo porque não tinha muita escolha. E era com esse modelito proleta, com direito a sandália havaiana e eterno embornal no ombro, que ele cruzava as ruas da cidade.
Fazia “ poesia engajada”, seja o que quer que isso signifique. Poema sem rédeas, nem pensar. Escrever sem lenço e sem documento não era lá muito inteligente. Precisava dessa muleta de apoio.
Era onipresente em projetos culturais, ocasião em que fazia a concessão de trocar as sandálias havaianas por uma outra de couro cru, mas o embornal com a cara do Mahatma Gandhi tinha de comparecer, às vezes trocada pela cara do Mandela. O importante é que fosse um representante de minorias. Vez em quando um verso. Afinal era um poeta.
Ela era doce e bela. Olhos claros e luminosos. O tipo lânguido e moribundo. Também fazia versos. Cheios de lirismo e suavidade. Não era exatamente recatada e do lar. Nas horas vagas trabalhava. O modelito era inegavelmente, burguês. Não fazia “poesia engajada”. Mesmo porque, burguês engajado, se é que existe, é fruta rara. A distância do proletariado era inegável. Não a atraiam as grandes causas sociais. Paris não entrava na sua ótica em termos de liberté, egalité e fraternité. Era apenas uma rota de férias. Pobreza não era sua especialidade e nem a atraia. Pobre, segundo seu ponto de vista era, quando da primeira classe, olhava a plebe apertadinha na classe econômica. Era o máximo a que se permitia nesse quesito. Seu modelito não era, definitivamente, sandália havaiana e embornal. Preferia aparecer em cima do salto, muito naturalmente. E escrevia. Produzia assim, meio distraidamente, sem querer provar nada. Era apenas uma mulher. A vida não lhe doía muito. Criar era uma dor suportável.
Foi aí que se viram. Ela botou reparo na sacola de Mahatma Gandhi e o chinelo de dedo. E ia parar por aí. Mas nosso irmão poeta espetou-a com um olhar tão guloso lá da classe econômica, que ela não conseguiu virar as costas e tocar a vida.Seu DNA de delicadezas não lhe permitia tal coisa. Sustentou o olhar e ignorou os sinais de fumaça. Ou fingiu ignorar, que o tempo foi passando e a fumaça já lhe provocava tosse. No seu aniversário, ele lhe deu um abraço. Forte, caloroso, firme. E alguns versos da própria lavra, que ela guardou na sua caixinha de lembranças.
Mas não se fez de rogada. Respondeu passando-lhe um bilhetinho:
                        “Soletro intenções malignas
                          Na serpente do seu abraço.
                          Um laço.”
Deu caldo. O versinho era chinfrim, mas o improvável aconteceu. Os modelitos se entrelaçaram. E enquanto estiverem desaguando em versos tá valendo.
Afinal, um dia, uma psicopedagoga, Alícia Fernandes, disse: “nós, os humanos, temos a capacidade de “desadaptação criativa””. Funcionamos assim, na ousadia, na ruptura, no improvável, quando a sandália havaiana e o embornal se encontram na classe executiva e levantam voo. Pra onde? Não sabemos.
O importante é fazermos como Nélida Pinõn e reservarmos novidades para nós.



Maria Solange Amado Ladeira                            01/05/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br

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