De anjos e asas



De anjos e asas
Solange Amado

Dia cinzento, frio. A moça acorda com a avó atrás do toco. O panorama visto da ponte é o mais trágico possível. Na praça em frente à sua casa, as ratazanas fazem uma recepção toda noite. Mas a TV conta, logo ao nascer do dia, que em Brasília a festa dos ratos supera qualquer recepção de roedores pelo mundo afora. E pior, ela paga a festa. Na verdade, é uma vaquinha. Cada um paga um pouco.
Lá embaixo, a plebe ignara corre pra bater o ponto, defender o pão de cada dia, e pagar o preço dessa festa. Preço nada. Como diz o Luiz Fernando Veríssimo, preção. O preção alto que anda matando. E vocês pensando que a pressão alta é que mata. Não é. É a PREOCUPREÇÃO.
Isso irrita a moça que já anda com a imunidade baixa. Ainda bem que ela conta com a colaboração da sua faxineira, que iniciou uma campanha de sucos pra eliminar essa sua, como ela diz, falta de “humanidade”. Haja suco pra suavizar os efeitos do “preção” alto.
Mas não hoje. Pra coroar o mal estar de tanta notícia ruim, a dentadura da faxineira quebrou. Carece uma nova. Ela chora. A moça, que já está com a “humanidade” mais reforçada por conta de tanto suco detox, sai à procura de um dentista. O amigo, consertador de dentaduras tem a “humanidade” bem mais desenvolvida do que a moça. Entende a situação. Mesmo assim, o preço é salgado. Seus parcos caraminguás não suportam tanta opressão. A moça explica que tem de sustentar, todo mês, um tanto de deputados, senadores e inúmeras outras sanguessugas políticas. Conseguem se entender. Sua fiel servidora terá seus dentes de volta. Não foi uma manhã de todo perdida.
Mas a moça é insaciável.Queria ter asas para alçar voo até uma altura em que os problemas não a alcançassem. Onde preções e pressões não a atingissem, onde não precisasse acordar com notícias ruins, doenças e dores. Deus não dá asa pra cobra.
E como ela não pode voar. E é um ser bípede e proletário, vai caminhando com seu SP2 usado e mambembe pra exercitar seu corpo cansado. Vontade de depor as armas, de se entregar.
No meio do caminho, um café. A sede bate. Entra e vai comprar uma água. É quando ele aparece. Um tico de gente. Deve ter uns 3 ano de idade. Sujo e maltrapilho. Aproxima-se de um senhor que toma um café com pães de queijo. Não pede. Fixa um olhar famélico e pidão no prato de pãezinhos, até que o homem lhe oferece um. O menino sorri, agradece e sai carregando com cuidado sua preciosa carga.
A moça saiu atrás. E para sua surpresa. Na calçada o espera uma menininha. Deve ter quase 1 ano. Mal se sustenta nas pernas. Faz frio. Ela chora. O catarro escorre em cachoeiras pelo nariz.
O menino se senta, coloca a garotinha no colo e com as mãozinhas imundas, vai partindo o pão de queijo em pedacinhos minúsculos e a alimenta. A criança se cala. Em nenhum momento ele come um pedaço.
A moça assiste à cena com lágrimas nos olhos e uma sensação infinita de impotência. E a constatação de que existe sim, humanos que nascem com asas. E voam muito acima do mal estar e da lama em que nos debatemos, nós, pobres mortais, sem a capacidade de voar que possui esse anjinho sujo no meio da calçada.
A moça resolve não se entregar. Não ainda.




Maria Solange Amado Ladeira             15/05/2018
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