O assassinato


O assassinato
Solange Amado

Se está vivo, corre perigo. É só o que sei. E não sei muito.
Sempre vivi aqui, escondidinha no escuro, na santa paz, lendo os meus livrinhos, e fazendo uma caminhada pelas imediações. Uma vida solitária. Só uma voltinha à noite pra buscar comida. E como sou pequenininha, nem precisava de muito pra encher o bucho. Sempre há algumas migalhas embaixo da mesa ou da geladeira. Os humanos não são muito asseados, e felizmente desperdiçam muito, o que permite que nos locupletemos.
Vidinha tranquila dentro desta gaveta esquecida, lotada de papéis velhos, de vidas que se foram, registros de momentos e imagens sem mais nenhuma importância. Inutilidades que os humanos carregam como bagagem inútil.
Essa tranqueira que os humanos chamam de lixo,  eles mantêm uma relação de grande dependência com ela. O que, diga-se de passagem, facilita a nossa vida de insetos rastejantes. Deu moleza a gente se instala.
A velhinha, dona desse apartamento onde moro, é boa gente. Não tenho  muito do que me queixar. Ela não exige muito, desde que você seja uma presença discreta e não fique se exibindo por aí, e principalmente, não se encontre com ela. Tá tudo dominado. Ou assim pensava eu.
Nossa convivência foi pacífica até hoje. Eu só saio à noite, discretamente, pelas imediações, e ela nunca abre a minha gaveta. Acho que ela tem um pouco de medo do seu passado cavernoso e dos fantasmas que podem saltar de dentro dessa tralha, que se tornou a minha residência.
Há 11 anos moro aqui. Nunca paguei IPTU. Nunca paguei aluguel. Invasão de sem terra. Me instalei aqui e nem sei se ela deu pela coisa.
Não me queixo. E nem é difícil achar um companheiro nessa casa. Sou só uma barata. E barato é o que mais tem nesse quarto. Não é preciso ir longe. Minha cama é um saleiro com a ponta quebrada. Só Deus sabe o porque foi esquecido há tantos anos nesta gaveta.
Pois é. Mas alguém já disse: com a liberdade só podemos sonhar. E aí a gente acorda e o laço da realidade está em volta do nosso pescoço. O “para sempre” está contido na brevidade do agora.
Exatamente nesse momento das minhas considerações filosóficas, a velhinha abre minha casa-gaveta.
Eu já estava desconfiada. Muitas coisas já estavam sendo defenestradas à minha volta, mas minha gaveta continuava intacta.
Tive esperanças. Ainda acreditava que a vida me pertencia.  Ledo engano. Aquela tralha à minha volta sempre me mostrou que as coisas nos são emprestadas. Um dia a gente vai ter de devolver, então, melhor não se apegar.
Quando a velhinha abriu a gaveta, a luz inundou o ambiente, fiquei momentaneamente cega. Foi o meu vacilo. Se eu não tivesse me assustado, talvez tivesse tido a oportunidade de escapar pelos fundos. A mulher tem tanto medo de mim quanto eu dela. Isso é um fato. Não soube aproveitar. Baratas não costumam ser muito intel1igent1es. Mas humanos também não. Então, estamos empatadas.
Eu não tinha mesmo cacife pra partir para a luta. Ela ganhou a queda de braços. Pior. Ela usou arma química, me pareceu gás sarin ou similar. Não tive a mínima chance.
Agora estou aqui respirando com dificuldade. Uma barata narrando a sua própria morte, entrincheirada num saleiro quebrado. Nada vai me restar dessa vida breve. Não me dói muito. Viver doeu mais. E morrer também faz parte do jogo humano.
Estou morrendo. Sou apenas uma barata. Nunca realizei nada muito feérico na vida. Foi uma vida de sombras e anonimato.
Meu consolo é saber que minha assassina tampouco é autora de grandes feitos. Talvez o seu maior feito na vida tenha sido abrir uma gaveta e matar uma barata.
Tem sido assim através dos tempos: /”Mors tua. Vita mia”. Sua morte, minha vida.






Maria Solange Amado Ladeira                17/04/2018
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