E ele foi embora



E ele foi embora
Solange Amado
Foi simples assim. Ele disse que ia embora. Sem volta. Precisava se encontrar. Estava perdido. E o que fazer de 20 anos de casamento, 3 filhos, uma história de amor, alegrias, dores e sofrimentos, jogada no lixo sem mais aquela.? Fui!
E aí, ela é que ficou perdida. Ficou ali, com cara de tacho. Ela, pau pra toda obra. Mãe, amante, esposa, empregada, faxineira, motorista, professora, e mais toda a merda que vem no pacote do casamento. Ela, que pensava ter chegado enfim, a pastagens mais bem aventuradas do mundo de delícias e dores dessa coisa chamada “vida em comum”.
Tudo andava nos trilhos. Pelo menos ela pensava assim. Difícil um vulcão ou um terremoto que perturbasse a realidade morna daquela união. Quando muito, um bradissismo, difícil de provocar um descarrilamento no trem da vida. E qual relacionamento, depois de tanto tempo, não entra num trote regular e calmo, bem previsível? Mesmo porque, ninguém pode manter uma vida a dois em estado de mania permanente ou  num pas de deux harmonioso e lírico por 20 anos. Administrar suor, ronco e chulé, derruba qualquer romantismo, que isso também cabe no modelo normal de qualquer relacionamento. Mas ela administrou, tirou de letra. E tocou o bonde.
Ele não era nenhum príncipe. Talvez, quem sabe, concedo, a princípio. Com o passar dos anos, ficou mais pra sapo. Mas aí não tinha importância. A transformação de príncipe em sapo costuma ser lenta. Os valores se tornam outros e com a idade, as pessoas ficam meio míopes. E isso é recíproco. Ou pelo menos, ela pensava que fosse.
Não era. A miopia só atacou do seu lado. Ele continuou a enxergar muito bem à sua volta, principalmente as coleguinhas de suas filhas. E foi com uma delas que ele embarcou para  “se encontrar” em outras paragens. E a deixou estatelada no meio do caminho.
Primeiro ela deu um tempo. Crise da meia idade. É claro que ele ia cair em si. O que uma ninfeta de 18 anos em flor podia oferecer a um garanhão aposentado, PHD em Literatura Inglesa, senão bunda e peitos durinhos? Nenhuma pílula azulzinha iria dar conta de tanta vitalidade por muito tempo.
Esperou. Não veio nenhum sinal de fumaça. Ela foi pra frente do espelho. Considerou cortar a barriga, levantar os peitos, botar um pouco de silicone no bum-bum, botox na cara. Mas favas contadas, seus recursos físicos e monetários não davam nem pra começo de conversa, o que diria da recauchutagem completa. De mais a mais, há muito ela não provocava nenhum frisson naqueles homens em idade provecta que a rodeavam.
Também já tinha desaprendido o jogo da sedução. Carecia uma reciclagem. Até tentou. Comprou uma langerie preta, transparente e erótica. O efeito foi contrário. Ficou parecendo um morcego meio cego na meia luz do quarto. Sem chance.
O comprimidinho azul cumpriu sua função. E o novo casal ficou grávido. E nasceu um lindo rebento.
Ela chorou litros de lágrimas. Tomou soníferos, antidepressivos e ansiolíticos, e na impossibilidade de rasgar a cara do dito cujo, rasgou as fotos do casamento de férias no campo ou na praia. Sem efeito.
Ela lia. Lia muito, porque não via saída para a angústia. Olhava as estantes da sala repletas de livros. Começou a escrever e descobriu que isso a apaziguava. Aos poucos a dor foi amornando. E um dia descobriu que não o amava mais a ponto de se machucar. E se o amor não machuca, está morto.
Ontem, um domingo morno e preguiçoso. Enquanto degustava um livro e ouvia Chopin, a campainha tocou. Lá estava ele. De pé e derrotado.
Pediu socorro. Estava preso naquela teia distante do seu mundo. Botou reparo na capa do livro que ela lia, e curtiu Chopin como pano de fundo. Olhou guloso para o cenário tranquilo de domingo à tarde e murmurou: “Eu só queria poder voltar atrás”.
Ela pensou em oferecer café. Não o fez. Lembrou-se que havia coado de manhã. O pó acabou. E ela nunca gostou de café requentado.


Maria Solange Amado Ladeira         -22/05/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br
















Nenhum comentário:

Postar um comentário