A dúvida



A dúvida
Solange Amado
“Dá pena, mas dá raiva também!” Ele se referia a sua tia velhinha, de mais de noventa anos. Era o único sobrinho, de uma leva de 20, que a visitava, o único que se importava, ou pelo menos, gostava de pensar assim. Ou a suportava. Vivia dividido entre a pena e a raiva.
A tia era rica. Vivia num amplo apartamento, cheio de pratarias e cristais, com uma cuidadora. Sua fazenda e seus imóveis eram administrados  por advogados,  que se locupletavam  cada vez mais.
Com quase cem anos, a velha tinha a mobilidade bem reduzida. Marido e irmãs tinham morrido. E o único filho, que sempre viveu em um país distante, também já havia sucumbido vítima de um infarto.
O sobrinho a visitava uma vez por semana, como penitência. Sempre levava um agradinho e ouvia com paciência os queixumes da velha. Gostava de pensar que fazia isso porque era caridoso, magnânimo. A velha sempre fora famosa pelos seus queixumes. Ninguém me ama, ninguém me quer era a tônica de qualquer papo com ela.
Uma vez, ele tentou argumentar: “Ora, tia, a senhora também tem que procurar as pessoas. Ligue para uma amiga e a convide para um chá na sua casa ou num dos cafés aqui em volta”. Foi quando a velha resmungou mal humorada: “Só se eu ligar para o Cemitério do Bonfim. Estão todas lá”.
Daí o desabafo do sobrinho, sentado à minha frente. Será que ele suportava a velha porque era assim tão altruista? Será que não havia nenhum interesse atrás? Isso o incomodava muito. No fundo, no fundo, ele não era tão bonzinho assim. Seria mesmo tão diferente dos 20 outros sobrinhos? A solidão da velha mexia muito com ele. Lembrou-se de Hanna Arendt: “A velhice não consiste apenas em envelhecer, mas na experiência de uma espécie de desflorestamento, à medida que rostos conhecidos ininterruptamente vão desaparecendo”. Algo parecido com  os grandes claros da  Floresta Amazônica.
Isso o incomodava quando pensava na tia. Mas a velha era parada dura. Exigia mais e mais. Era cáustica nas suas observações. E ele ali, na primeira linha de  batalha, ressentido com os primos, que deixavam aquela carga sobre seus ombros.
E eis que um dia, a velha morreu. Claro, ele cuidou do velório, cremação e todo o resto do cerimonial. Depois, reuniu toda a primaiada no apartamento da velha senhora. Todos eram herdeiros, já com os cifrões piscando nos olhos e todo mundo abrindo cristaleiras e armários, fazendo um inventário do que poderiam surrupiar.
Foi aí que ele percebeu., “Quer saber? Não sou o desinteressado que penso ser. Não sou melhor do que ninguém. Tive um impulso violento e assassino de empurrar aquele povo pela janela  do décimo segundo andar. Aquelas aves de rapina! Com que direito eles iam receber aquela herança? Eu devia ser o único merecedor!”
Pois é. A vida não é justa. E todo mundo tem de andar no fio da navalha de si mesmo. Ele entendeu. Finalmente.









Maria Solange Amado Ladeira                   29/05/2018
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