Uma esperança



Uma esperança
Solange Amado

Ela apareceu ali e fincou pé na calçada, na sarjeta, melhor dizendo, na minha calçada, na minha sarjeta. Era espaço mais meu do que dela. Eu não tive escolha. Ela teve. Faz uma grande diferença.
Tinha cocô de cachorro, poça de água suja, uma rachadura  no piso, bueiro entupido e papéis velhos espalhados.
Todos os dias eu saltava por cima de toda essa porcaria pra fazer o meu rendez-vous. Ela não. Estacionou bem ali, na sujeira, me desafiando.
Sol quente, fumaça de ônibus e ela ali, como dois de paus, se oferecendo na esquina. Na minha esquina. E era bonitinha, a danada!
A princípio resolvi ignorar. Não valia a pena medir forças com uma criaturinha miúda, praticamente uma criança, fazendo ponto na minha calçada. Com tanta ave de rapina em volta, tantas más intenções, ela não ia sobreviver mesmo.
Eu já sabia me defender, já era macaca velha na praça. Ela não. Não conseguia imaginar como ela vivia, como sobrevivia, como se alimentava, como se hidratava.
Ela não parecia cobrar pelos seus serviços. Só ficava ali, seminua, pra todo mundo ver. Quem quisesse podia passar a mão.
Uma vez, chegando do supermercado, trazendo suquinhos gelados, surpreendi-a um pouco cansada, cabeça baixa. Achei que devia estar deprimida. Tive o impulso de dividir com ela uma aguinha fresca, mas mudei de ideia. A escolha foi dela. Que se safasse!
Aquela presença tão pequena e gratuita começou a me causar espécie. Ela cabia numa rachadura na parede e dividia o espaço com as ratazanas esfomeadas da praça. E vivia de brisa. Ao que parecia, nenhum desejo a atormentava.
Esse nem-te-ligo para o frenesi da cidade, do asfalto quente, começou a causar coceira nos meus brios. Como é que alguém ousa não desejar? Como alguém vive assim, sem medo ou receio. Como é que alguém pode viver só de momento? E o amanhã? Não existe?
Minha colega de calçada, delgada, miúda, tinha aquela fragilidade enganadora. Mas faltava-lhe, felizmente, aquele lirismo enjoativo, cínico, tão comum em falsos selfies.
Não torcia o nariz para a sujeira  à sua volta. Crescia luminosa e branca no marrom da imundície. Apenas uma esperança. E olhava para mim todas as manhãs com um acolhimento simples. Ousava só ser. Como toda flor. Porque minha companheira era só isso: uma flor. Nasceu assim, gratuitamente na greta do meio fio, em frente à minha casa.
Durante algum tempo, lutou contra tudo e todos. E foi. A despeito de ter me encantado e incomodado ao mesmo tempo.
E justamente por não ter sido uma orquídea, mas uma florzinha branca e patética, me lembrou Carlos Drumond de Andrade:
       “Não, o tempo não chegou de completa justiça.
         O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera
         O tempo pobre, o poeta pobre,
         Fundem-se no mesmo impasse.
         Em vão me tento explicar, os muros são surdos
         Sob a pele das palavras há cifras e códigos
         O sol consola os doentes e não os renova,
         As coisas. Que triste são as coisas consideradas sem ênfase.
         Uma flor nasceu na rua.”





Maria Solange Amado Ladeira                        10/04/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br
        



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