Um livro
Solange Amado
Ela pega o
livro como uma boia em alto mar. Agarra-o como a uma tábua de salvação. Remédio
contra a angústia. A alma alça voos através das grossas grades da janela, nas
asas das palavras. Sempre foi assim. Ela e suas palavras. Farinhas do mesmo
saco.
Durante as muitas intempéries que enfrentou na vida, o livro,
sempre ele, salvou a sua vida. Cheio de palavras, e em silêncio, ele a
abraçava, a acariciava, dormia a seu lado. E tinha um cheiro peculiar, que a
inundava e a fazia reconhecê-lo, mesmo de olhos fechados. O sultão sofrimento
ficava meio anestesiado pelas histórias dessa Sherazade literária.
Às vezes triste, às vezes alegre, de um jeito malandro, ele
vai se insinuando matreiro e a rapta para prados mais verdejantes, bem além da
Taprobana, muito mais além do arco-íris. E ela embarca nessa canoa, sem nem
saber se está furada, tal o encantamento pelas palavras que a guiam.
Mas enganam-se se
pensam que é sempre uma eterna lua-de-mel. Ela e o livro. Ás vezes ele é um
chato de galocha. E quando isso acontece, ela aborta a viagem, apeia do cavalo,
desce da canoa, desembarca do trem. Tem a coragem de admitir que não é a sua
praia. Que não o acompanhará nessa toada.
A relação dos dois foi sempre assim: de honestidade. Não
importa à moça se o exemplar à sua frente tem o prêmio Nobel de Literatura no
seu currículo. Se a melodia não agrada, ela vai caçar a turma dela.
Não importa se o livro se apresenta de fatiota nova, se a
estampa é de grife, não importa se vem recomendado pelos membros da Academia
Brasileira de Letras ou pelos Acadêmicos do Salgueiro, vai preso assim mesmo se
não se comportar.
E por “se comportar” leia-se, sair do ramerrão costumeiro,
fazê-la levantar voo. Pois é disso que se trata: do mágico poder do livro de
fazer alguém perder o chão. A magia das palavras, que de compasso em compasso
vai formando uma irresistível melodia. E aí, não adianta se amarrar a um
mastro. Não funciona. Já virou vício. E como a moça é apenas uma mulher, tem
indulgência plenária: as fraquezas são permitidas.
Mas hoje, a questão foi de urgência. O mar não está pra
peixe. Ela lança mão do livro para não se afogar. Agarra-o sofregamente. Ela só
sabe nadar se o mar for de letras.
Ela vai correndo os olhos pelas páginas. Dizem que a autora
anda fazendo o maior sucesso. Carece botar reparo. As palavras vão marchando
num silêncio pesado. Fica com pena delas. Vão desfilando enfileiradas em marcha
militar, entre pontos, vírgulas e tanques de guerra. Sem sair daquela formação,
elas exibem um passo-de-ganso cansativo e pesado. Espetáculo grandioso de Praça
Vermelha. Tudo muito correto, organizado. Nenhum jogo de cintura. E
criatividade não entra em fila.
A moça anseia por uma piscadela de uma daquelas
palavras-soldado, pra botar um pouco de molho nessa marcha. A moça resiste.
Talvez se ela fizer cosquinha nas palavras, saiam todas dando gritinhos pra
fora das vírgulas e pontos. Aí sim, ia ser divertido. Desse jeito, parece um
velório de palavras. E ela não gosta de velórios. E se querem saber, não vale a
pena gastar vela com pouco defunto.
Ela pode até escrever sobre o finado. Na vida nada se perde.
Mas vai parecer o bolero de Ravel. E não vai aplacar a sua angústia.
É. Hoje o bolo solou.
O jeito é botar a viola no saco, a angústia no bolso e sair por aí bagunçando o
coreto das palavras. Abaixo a marcha militar da mesmice!!
Maria Solange Amado Ladeira 03/04/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br
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