Missão impossível?



Missão impossível?
Solange Amado

Chovia. Era noite. A moça não tinha nem sono, nem assunto. Como escrever? De qualquer maneira, mesmo se a inspiração baixasse, e ela botasse no papel algumas palavras rarefeitas, a chuva ia se encarregar de molhar tudo. Seria um texto molhado, derretido, desmanchado. Não valia a pena gastar neurônios.
Ultimamente ela vinha economizando neurônios. Andava juntando todos os que pudesse, recolhendo pela noite todos os que estivessem dando bobeira debaixo da chuva, ou passeando pelo shopping, enfim, qualquer neurônio distraído, desavisado servia para a sua coleção.
O estoque ainda era pequeno para o seu projeto. Mas não era um projeto modesto. A moça queria se tornar uma escritora. Verdade que carecia de um certo “physique du rôle” para encarar essa empresa. Estava mais para um personagem de Boccacio 70. E escritoras muito redondas não são recomendáveis. Redondezas carecem de cantinhos onde os textos podem esconder as obviedades. E obviedade, decididamente não faz parte de nenhuma escritora que se preze.
Se a moça fosse mais angulosa, não tinha pra ninguém. Só um sorriso de Monalisa, a chuva batucando lá fora, uma flauta doce, um músico pobre e talentoso já podiam produzir um calhamaço de 400 folhas. Se fosse em Paris, no Quartier Latin, seria tiro e queda: Prêmio Ignóbil de Literatura! Infelizmente, sua chuva era modestamente do Terceiro Mundo.
Mas a moça ainda não conseguiu um número de neurônios suficiente para uma arrancada até à fama. Não obstante, ela não desiste: toda semana  roda a sua bolsinha de letras, sem que a imortalidade a tenha bafejado.
Talvez esse negócio de aprisionar palavras em um texto não seja uma boa política. Mas foi assim que ela aprendeu. O ser humano sempre pensa que pode ser dono das liberdades. Às vezes até pensa que é dono da verdade. Vive aprisionado pela pretensão de dominação. E ela achava que podia  domar as palavras, botar cabresto, vestir roupa nova nelas. Talvez uma maquiagem, um botox, enxugar gordurinhas, esticar as mais tímidas, uma lipo pra adelgaçar um parágrafo. Deus sabe mais o que.
Marguerite Duras regava as palavras dela com muito whisky escocês. Funcionou. Simone de Beauvoir pitava sem parar e as palavras pareciam brotar da fumaça.
A moça não gosta de whisky . Só toma Hi Fi – Vodka com laranja. E esse negócio de laranja não é recomendável nem na literatura.
Será que escrever é missão impossível? Svetlana Aleiksiévitch chegou perto quando disse: “vivemos mais rápido do que antes. O conteúdo rompe a forma. Tudo extravasa das margens. E no documento, a palavra escapa dos limites. Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo, assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador”.
A moça se levanta, vai até à janela espiar a chuva. Descansa suavemente as mãos no parapeito onde uma abelha dorme. Quer dizer, dormia. Foi brutalmente assassinada durante o sono.  Não era essa a intenção.


Maria Solange Amado Ladeira             20/03/2018
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