Atos falhos


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Atos falhos
Solange Amado
Ela era meio pirada. Quiçá ainda seja.Nasceu com o inconsciente a céu aberto, como todo bom biruta. O coitado do analista, ao invés de tentar abrir o inconsciente, tentou bravamente, por muitos e muitos anos, aparentemente sem êxito, fechar esse buraco por onde vazavam incongruências e botava todo mundo na saia justa. A moça sofria, ou melhor, ainda sofre de ato falho crônico. É encontrar uma brechinha e seu inconsciente fujão  escapole. Virou uma famosa manoteira.
Deveras mesmo, ela nunca teve talento para escorregar e escapulir com mentirinhas sociais tão a gosto dos políticos. Também não é assim uma Madre Tereza de Calcutá. Nunca reivindicou para si essa honestidade ilibada. Talvez vá para o céu, mas com muitas paradas para o cafezinho.
Dia desses, o porteiro interfona que uma pessoa chatissima estava subindo para uma visita inesperada. “Credo! Ninguém merece!” Nada a fazer. Nossa amiga tira da algibeira seu melhor sorriso, abre a porta e exclama: “CIAO, fulana!” Deu confusão. Seu inconsciente lazarento, ao invés de receber, se despediu da visita. A moça tentou se justificar com argumentos tão frouxos quanto o de políticos tentando escapar da lavajato: “Desculpe-me. Minha ascendência italiana me trai. Você sabe, os italianos dizem “ciao” quando chegam e não quando saem. Estou acostumada a recebê-los” Pior a emenda do que o soneto. Ninguém sabe dessa sua pretensa ascendência italiana. Mas não foi perda total. A visita, que saca de ato falho, nunca mais voltou.
Nem sempre suas manotas são assim cobertas de êxito. Uma vez ela deu parabéns num velório. Entrou, em meio a muita agitação, esperou pacientemente numa fila grande para os pêsames. Na hora H, abraçou a filha da morta, cuja, também estava presente bem ao lado e exclamou:” Parabéns, fulana!” Todo mundo escutou. Como não cabem desculpas para o inconsciente. Ela inflou o peito e saiu do recinto juntando os cacos da sua dignidade.
Até hoje os amigos não esquecem a saia justa. Mas Deus é misericordioso com os pirados. Essa amiga mudou-se para o outro lado do oceano e nunca mais voltou.
O fato é que, a cereja do bolo perpetrada pelo inconsciente despirocado da moça, voltou à cena, há poucos dias para assombrá-la. Depois de uns 20 anos.
A moça subia a escada rolante de um shopping, quando deu de cara com ele: O Batata. Explico. O Batata era, como  o apelido  já diz, baixo, gordinho, nariz chato. Mas como sói acontecer com os gordinhos, era simpático, agradável, bonachão. E ela não o conhecia. Era amigo de um amigo que frequentava muito a casa dela e vice-versa. Mas o gorducho, talvez por timidez, ficava sempre no carro esperando. Ela só o via de longe, pela janela. “Cadê o Batata?” Tá no carro, esperando”. Era o mantra. Era muito tímido, o sujeito. Coisa assim de um “Papai Pernilongo” da era M. Delly.
Vai daí que, um dia, o pai do amigo da moça morre. O cemitério onde houve o velório era recém-inaugurado. Bonito, cheio de verde, fazia propaganda na TV e tinha uma lanchonete cinco estrelas. Após os pêsames protocolares, foram todos se reunir na lanchonete. Uma enorme mesa redonda, com as pessoas se amontoando em volta como puderam.
Seu amigo então, levou-a até o Batata e fez as apresentações: “Finalmente, vocês estão se conhecendo. Este é o Batata!”. Prazer, coisa e tal e ela se sentou bem junto dele. Não havia espaço nem pra pensamento.
Acontece que o Batata, advogado conhecido na praça, estava metido num terno preto, camisa social, gravata apertada em uma tarde infernal de quente. O pobre homem escorria por todos os poros e o cheiro que se desprendia dele era algo aterrador. E o hálito não ficava atrás. O  homem parecia ter engolido as meias de algum atleta depois do treino.
 Não havia meios de sair dali. Ninguém se mexia. Finalmente, uma alma boa ofereceu para a moça uma carona para retornar ao lar. Aliviada, ela se levantou, acenou para o grupo se despedindo, e se virando para o seu vizinho pronunciou essas palavras fatídicas: “foi um grande prazer conhecê-lo, CEBOLA!”
Pois é. Não subestimem o seu inconsciente. Ele sim, é mais honesto do que Madre Tereza, do que o Papa, do que você mesmo.




Maria Solange Amado Ladeira                  20/03/2018
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