Reencontro



Reencontro
Solange Amado

Ela quase não acreditou. Depois de muitos anos e reumatismos, eles se esbarraram numa livraria. Os dois sempre gostaram de ler. Ele sempre sério, contido e arrumadinho. Nada de ficção. Ela costumava ironizar: “um pouco de “fricção” é sempre bom”. Não colava. Ele dizia que o gosto dela era, no mínimo, anárquico. Ele era escrupuloso nas escolhas. Ela queria coisas novas.
Ele nunca usou palavrões. Ela possuía um estoque variado. As palavras dele eram comportadas. As dela, nem tanto. Ele franzia a testa para “grudunhar”, encarquilhar”, “despirocar”, “abiscoitar”. Ela sempre adorou essas palavras molecas. Ele não admitia escorregar na batatinha. Nem na batatinha literária, quanto mais na batatinha da vida.
Deu caldo por algum tempo. Depois o barco fez água. E a coisa despirocou. Cada um pro seu lado. Pela vida afora, ele foi amealhando títulos e prêmios universitários. Ela nem tanto. Nunca foi muito confiável nesse negócio de dez com louvor.
E muitos anos depois, se esbarraram numa livraria. Ele tinha uma agenda cheia. Ela nem tanto. Titubeante, ele resolveu abrir uma janela na sua vida atarefada e os dois se sentaram para um drink.
Cheios de dedos, cada um evitava escorregar para algum assunto mais comprometedor. Todo cuidado é pouco. Falaram sobre suas carreiras, das pindaíbas, dos perrengues de jovens professores, dos alunos, das famílias. Ela reparava na careca, nas rugas, na barriguinha saltando em cima do cinto. “Você está muito bem”. Ele, por sua vez, fingia não reparar na devastação da criatura a sua frente. “O tempo não passou para você”.
Ela ainda se lembrava que ele tinha uma pegada boa. E de como gostava de atrapalhar seus cabelos no rala e rola, na calada da noite. Definitivamente, ele não era de se jogar fora.
Não se sabe por que cargas d’água, talvez o sol que se punha tão belo no horizonte, a tarde preguiçosa, o vinho descendo redondo e se espalhando por cabeça, tronco e membros na maior das liberdades. Não se sabe porquê, o assunto  veio vindo de mansinho e se instalou. Falaram da “picada do escorpião”. Como é que foi mesmo? O “grande oito”. Muito complicado. “O mestre do sofá”. E como foi difícil depois desmontar o sofá, que nem a “cadeirinha de beco”! “O arco sagrado”, um trem danado de difícil! Entre goles de vinho e gargalhadas, olhares e mãos que se tocavam com ternura há muito esquecida, ela teve vontade de confessar, mas não o fez por vergonha, que no duro mesmo, a posição de kama sutra que a marcou mesmo foi o “voo da garça pela via láctea”. Mesmo porque não dá pra repetir o feito sem ver estrelas por muito e muito tempo. E  ela desconfia que a garça não levanta mais voos.
Ela comprou “Vozes de Tchernóbyl”, de Svetlana Aleksiévitch, premio Nobel de Literatura de 2015. Ele comprou algo mais sério sobre a nova desordem mundial.
Bons tempos o do kama sutra!
Ela quase não acreditou quando se esbarraram em uma tarde quente naquela livraria. Mas como já disse algum filósofo de botequim: “Não tem nada que a gente possa fazer sobre o passado, a não ser deixá-lo onde está”.



Maria Solange Amado Ladeira                06/02/2018

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