O Fantasma
Solange Amado
É lindo o por-do-sol! O laranja explode fechando a tarde. Que
bom se ele estivesse aqui! Que bom se ele pudesse se alegrar com essa beleza!
Cores e dores. É assim que ela sabe que ainda o ama. Não pode sentir o perfume
das flores, ouvir o marulho das ondas do mar numa noite morna e enxergar um sol
que se põe numa explosão de cores, sem querer dividir com ele esse momento
especial. É assim que ela sabe que o ama. Que sempre o amará. E isso é uma
doença incurável.
Às vezes dói. Às vezes arde nos olhos, às vezes a transporta
a um mundo tão sereno que apaga qualquer angústia. E às vezes é angústia pura.
E um encontro. Ela o olha nos olhos. Sabe que ele está ali e que sorri para
ela, mas não pode tocá-la.
Quando se despediu dele já sabia disso.
Então, porque essa coisa besta de saudade? Já não chega ter
de mascar esse chicletes que é a vida, pelos anos afora? Já não chega ter de
pelejar com essa inconha, esse pesadelo da incompletude? E a nunca ter férias
de si mesma? Não obstante tudo isso, ainda tem de lidar com aquele fantasma
onipresente: Ele.
Às vezes, tem medo de um nascer do sol, de um arco-íris. Ele
invade qualquer paisagem. Às vezes pensa que ele lhe roubou a beleza. Ausência
mais invasiva!
Já tentou de tudo. Armas químicas, meditação, yoga, sugestão,
anos de psicoterapia. Tudo inútil. Ela o carrega como uma segunda pele.
Recentemente, consultou um advogado pra ver se cabia aplicar
nele a Lei Maria da Penha. Assédio. Perseguição sem tréguas. Ele não a deixa em
paz. Mas advogados não saber deslizar no significante. Advogados não metaforizam.
Aplicam a lei. A lei lá deles, é claro. Mas de qualquer maneira, não são
criativos.
Tudo bem, eles dizem que ela foi abandonada. Mas o crime já
prescreveu. Em 40 anos já virou um cadáver putrefato.
Não adianta explicar, que morto ou não, ele não lhe dá
tréguas. Grudou. E ela vai carregar pro resto da vida esse fantasma pegajoso.
Ainda mais que hoje, ele deve ser um velhinho claudicante e tremulo. Que, não obstante, invade o seu por-do-dol,
um luar sobre as águas, uma noite quente de verão. Ainda sussurra nos seus
ouvidos. Ainda lhe manda flores e bilhetes engraçados, pelo menos nos sonhos.
Ontem, ela radicalizou. Botou no fogo todas as suas cartas.
Um pacote amarelecido, amarrado com uma fita vermelha. Doeu. Mas as fotos
ficaram. Faltou coragem. Eram tão jovens, tão lindos, tão românticos. Não
carecia que todos esses sonhos fossem destruídos pelo fogo.
O tempo coloriu seus cabelos de cinza. Mas o sol continua com
tons quentes e vivos. Mesmo que cabelos e sonhos estejam esmaecendo. São 40
anos de esperança. Ela não sabe quantos mais. Amor e ódio. Uma bipolaridade
enlouquecedora.
Um dia ele volta. E aí sim, ela pode virar as costas e
atravessar o fantasma. Quando sonhos viram realidade, eles podem morrer.
Maria Solange Amado Ladeira 07/10/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br

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