La Page blanche
Solange Amado
A folha em branco me olha com cara de poucos amigos. Não me
importo. Sempre consigo amansá-la. Só mandar a minha melhor lábia e estamos
conversados. Ela cai como um patinho. É aquela história: meta a linguagem, bote
o palavrório que não tem folha em branco que resista.
Menos ontem. Ontem eu usei todo o meu charme e simpatia, todo
o alfabeto e o palavrório da língua portuguesa. Usei todo o plissado das minhas
circunvoluções cerebrais, mas não deu pedal. Não saiu nenhum texto. Eu
insistindo e a folha pirraçando. A coisa tava braba. Terreno inóspito.
Em geral, quando a folha em branco entra em TPM, eu me armo
de toda a paciência. Vou na maciota, discutindo a relação, aplanando as
arestas, gastando saliva e quando a gente vê, chegamos a um denominador comum:
conseguimos selar a paz, ainda que não seja com beijo na boca, pelo menos com
um civilizado aperto de mão.
Menos ontem. A folha fincou pé no vazio e o Espírito Santo se
recusou a baixar. E aí, a única solução foi caçar o rumo de casa. Não ia mesmo
chover na minha horta. E eu não sabia o porquê.
Vou fingir que não me assustei com o apagão, que não me senti
derrotada. E vou mudar de prosa. Já que não dá para escrever, vou ler.
Meu amigo me trouxe da França um livro. Quase 700 folhas.
Duvidei que ele tivesse adentrado em pessoa o recinto de uma livraria. Ele me
garantiu que fez esse sacrifício em nome da amizade. E até pediu uma indicação
ao dono da livraria. Aí eu me entrego ao livro. Quem não tem cão caça com gato.
A história é de um escritor. Ele faz um livro. Considerado
genial. Um primeiro e único. E arrebenta a boca do balão. Faz um sucesso
absoluto. Milhões de exemplares vendidos, traduções em um sem número de
línguas, prêmios internacionais e muito dim dim. A fama o engole: selfies,
autógrafos, carros, casas de campo e mulherada. Um ano se passa e o autor se
achando. E com um contrato gigantesco assinado com um grande editor.
Mas aí a canoa começou a fazer água. Lá vem a síndrome da
folha em branco. Seu livro virou samba de uma nota só. E o famoso escritor não
conseguia produzir sequer mais uma linha.
Desesperado com a pressão dos editores, procura o antigo
professor que o empurrou para a literatura.
O sujeito convida seu aluno talentoso para uma temporada na
sua luxuosa propriedade à beira-mar. E o velho professor vai direto ao ponto. A
história da page blanche. O que seu pupilo tem é nada mais nada menos do que
“la panique du génie”. O pânico do gênio.
Verdade que meu
livrinho, nada genial, não me rendeu
fama, dim-dim ou prêmios nacionais ou internacionais, nem fui convidada pelo
meu professor para uma temporada na sua luxuosa propriedade à beira-mar. Mas
isso é apenas um detalhe.
O que pegou mesmo, e me fez um imenso alívio, foi saber que
esses apagões que me acometem vez em quando são apenas “La panique du génie”.
Só não sei se isso tem cura, porque ainda não passei da página 100. E o cara
ainda não voltou da viagem à beira-mar.
Maria Solange Amado Ladeira 31/10/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br
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