O conto torto
Solange Amado
Resolveu que ia escrever um conto. Podia ser uma crônica. Mas
crônica pertence ao mundo feminino. E o que quer uma mulher? Tudo e nada.
Periga se perder na vastidão desse terreno minado que é esse tudo e o vazio
desse nada. Conto é mais seguro. É nada
mais nada menos do que um romance com preguiça. Combinava com ela. Romance ,
nem pensar. Não dava pra ficar no vai e vem de 300 ou 400 folhas. No meio do
caminho, a cabeça vai ficando fraca e não se sabe mais quem é quem no meio da
trama. Periga confundir alhos com bugalhos. Dá um trabalho danado.
Conto não. Conto é do universo masculino. Coisa de macho. Vai
direto ao ponto. Não dá tempo de discutir a relação. Tem de botar o ponto
final. Vapt vupt. Tem futebol logo à noite.
E aí ela escreveu: “O pai criava galinhas”. Só isso. Nada de
caminhos tortuosos. Ia falar do pai? Das galinhas? Dos ovos? Do galo
sobrecarregado com a galinhada? Não tinha a mínima ideia.
Começou de novo: “O pai criava galinhas E ela não gostava
disso. Era uma atividade penosa”. Tá bom. O uso do cachimbo faz a boca torta.
Não ia deixar passar a oportunidade de uma piadinha básica. Mas aí o conto já
nascia torto. O conto que devia nascer macho, com pingolim e tudo, não estava
se sentindo identificado com seu gênero. Talvez ele quisesse ser mesmo uma
crônica. Em tempos de identidade de gênero, querer obrigar o conto a ser só
conto é preconceito. Talvez ele fosse bi, trans, qualquer coisa assim. Talvez
fosse uma novela. Quem sabe, tirando o pingolim mudasse o gênero. Um gênero em
doses homeopáticas. Talvez seja disso que precisa. Pausas pra respirar. Novela
é bacana por isso. Pelas doses homeopáticas.
Mas a moça queria mesmo era o conto. “O pai criava galinhas.
E ela só queria um cachorrinho peludo...” Néca. Nem pensar. Seis crianças, três
mil livros, um piano e um cachorro correndo atrás das penosas. Não obrigado.
Não ia rolar, nem o conto, nem o cachorrinho peludo. O pai fincou pé. Coração
empedernido, não ficou sensibilizado nem quando ela prometeu três dias inteiros
sem nenhuma pirraça. Ganhou uma estrelinha solitária de bom comportamento, no
quadro que a mãe botava na parede. A estrelinha não trouxe o cachorro.
Disse umas boas verdades para o pai. Levou umas chineladas. E
o cachorro não veio.
Mais um ano se passou e um dia ele veio. Não um cachorro, mas
um gato. Talvez o pai não estabelecesse diferença entre cachorro e gato. Ambos
são peludinhos, podem enganar. O pai disse que tanto fazia. Já naquele tempo
ele farejava a identidade de gênero. Um cachorro que não se identificava com a
sua espécie, nem com seu gênero. Virou uma gatinha, pelo menos até segunda
ordem. Quem não tem cão, caça com gato. Gata, mais precisamente. Então, vamos
de gata. Nem te conto.
Miava que era uma desgraça. Se latisse seria melhor. Mas gato
latir, ainda não chegamos lá. Então, adotou a gata. Até se tomou de amores.
Durou uns poucos meses. E aí aconteceu a tragédia. A gata foi
assassinada covardemente. Amanheceu morta, com o pescoço estraçalhado. Talvez
um gambá. Não houve investigações. As galinhas dormiam protegidas, a gatinha
foi relegada à cobertura do tanque. Era o mais próximo que podia se aproximar
da Casa Grande. E como se pode depreender, a senzala não era nada confiável.
Foram feitas algumas hipóteses. Nenhuma alcançou o alvo. E
acabou-se o capítulo gata. Sem muito choro ou vela. Uma breve cerimônia e a
gata foi enterrada sem muita pompa à beira do rio.
Sem saber o que fazer, o pai lhe deu um pintinho. Ela o
agarrou com unhas e dentes. Tanto que um dia o matou por sufocamento. Por amor.
Novo velório, ao qual, todas as suas bonecas compareceram. Seu irmão mais velho
carregou o caixão. Aliás, a caixinha.
Depois disso, apareceu Erotildes, a lagartixa, que por meses
habitou o teto do banheiro. Era muito quietinha. Foi uma convivência
harmoniosa, muito serena. Elas se cumprimentavam pela manhã, Erotildes
levantava a cabecinha. Era o máximo de comunicação que havia entre elas. Mas se
entendiam. E uma bela manhã, seu cadáver foi encontrado em decúbito dorsal
dentro da banheira. Mais um adeus. Não havia terreiro. A cerimônia foi rápida.
Ela foi pra lixeira mesmo, numa caixinha de sabonete Phebo. Pelo menos foi um
cadáver perfumado.
Tantas mortes, tantos lutos, mas permanece um coração verde
de esperança, onde morava um cachorrinho peludo, que nunca veio, diga-se de
passagem. O tempo lhe trouxe amores, prazeres, dores nas juntas, cabelos
brancos, mas a menininha ficou lá trás sonhando.
O tempo passou. O cachorro cresceu. Ontem ela o viu na praça,
saltando dos seus desejos para o gramado. Grande e dourado. Amor de outono. Não
mais esmagado pelos seus braços. Não mais preso nos seus sonhos. Lá ia solto no
vento. Mas ele a reconheceu. Trocaram um olhar.
O pai criava galinhas. E ela só queria um cachorro peludo e
escrever um conto. Um conto torto. Vai que um dia ela consegue.

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