Postado em 10/10/2017
Ninguém é perfeito
Solange Amado
Ontem
choveu. Finalmente. E ela se entusiasmou. Sua horta de ideias ia brotar de
montão. Primavera de inspiração. Pablo Neruda que a aguarde!
Antes mesmo de lavar o rosto e escovar os dentes, acordou e
correu para os antediluvianos papel e caneta, que é melhor do que enfrentar a
lava jato virtual.
Me esqueci de dizer que suas circunvoluções cerebrais perdem
o rumo de casa quando a luz da internet se acende. Dias desses, catando seu
milho digital, deparou-se com a palavra”porno erótico”. Junto ou separado? Na
dúvida, abriu o Google, digitou a palavrinha insana e clicou. Sagrado Coração
de Jesus! Ficou com medo de ser excomungada pela Santa Sé, Indecências muito
melhores do que na lava jato!
Mas fechemos o parêntese, que aqui estamos falando é de sua
horta de inspiração. Depois da chuva, imaginou suas ideias vicejando em versos
geniais.
Ela queria fazer um poema encomendado. Tipo quando a gente
entra num restaurante e pede “um bife mal passado com bastante cebola”. E ele chega
chiando de quente, com cebola esparramada por todo lado. Macio de ninguém botar
defeito. Fácil assim. É que ela teve uma encomenda de um poema sobre a
primavera e ainda deram um monte de palavras-ingredientes, destinadas a
despertar o Neruda existente dentro dela
e fazê-la “escribir los versos más tristes esta noche”. Ela rezou pra São
Garcia Lorca e esperou. Mas ele tinha uma “luna gitana” pairando no céu a seu
favor. Ela nem lua tem. Olha pela janela e o “verde que te quiero verde” tá
numa secura de fazer dó. A chuva não foi suficiente pra fazer brotar seu canteiro de
ideias. E agora, José?
Vai lá nas palavrinhas fornecidas como indês. Começando por
“primavera”. Vera, a prima, nunca foi deveras vera. Na verdade tava mais pra
mentirosa. Depois da chuva, tirante abobrinha, nunca brotou nada que prestasse
naquela cachola. Então, primavera está descartada, com todo o rol de flores,
amores e cores, que fatalmente produzem galhos na primavera dos poetas.
De qualquer maneira, o verão já invadiu o pedaço. Não vai dar
caldo primaverir-se em pleno verão, com um grande sol amarelo. “Verde que te quiero verde” é cortado do seu
caderninho. Lorca que a perdoe, mas uma chuvinha de nada não incrementou a
horta da inspiração.
Um poema encomendado. É só o que lhe pediram. Coisa simples.
Se não for sobre a primavera, pode-se falar sobre o verão. E pronto. Muito mais
fácil. Experimentou:
“Verão tem
rima de montão.
Esse é o
primeiro verso,
Perverso,
Cretino
como o mundo
Imundo
Que não
padece
De falta
de assunto”.
OK. Ela pensa. Não são lá versos de um Neruda, mas é um
começo de conversa. Já meio que entrou nos primórdios de um trabalho de parto.
O que nascer, ela joga na parede. Pode virar uma lagartixa. Não é lá bem “El
caballo en La montaña” (que Lorca me desculpe). Nem é “viento en los pelos”.
Talvez seja mais assim um cabelo nas ventas poético. Mas não se deve exigir muito
da primeira chuvinha de verão. Afinal, o mundo não se fez em um dia. E olhem
que é muito mais fácil fazer o mundo, essa bagunça geral, que não exige
planilha, rima ou ordem, do que fazer um poema.
Está bem. Ela falhou. Ninguém é perfeito. Poetar exige jogo
de cintura. Muito ensaio pra adquirir malemolência. E juntas duras não produzem
belos poemas, não importa o quanto chova na sua horta. Não importa que Neruda sopre rimas nos seus
ouvidos e que Lorca lhe dê a mão para atravessar a pinguela de versinhos
mirrados que ela tenta produzir. Não importa a viagem que faça, seu trem jamais
vai parar na estação primavera. Já chega.
Ela larga caneta e papel e vai dançar o bolero de Ravel. Dois
pra lá, dois pra cá, com band Aid no calcanhar. Ela gestou uma cascavel e pariu
uma lagartixa. Tem nada não. Não sei se vocês sabem. Neruda tinha mau hálito.
Maria Solange Amado Ladeira -10/10/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br
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