Espírito natalino



Postado em 17/10/2017
Espírito natalino
Solange Amado

O edifício se chama Liberdade. Uma liberdade meio atarracada, meio macambúzia, diga-se de passagem, de uma cor amarronzada, meio fria, mal-humorada .Entra-se nele por um imenso corredor, e após percorrer mais ou menos um quilômetro, o atleta dá de cara com um porteiro loirinho e rabugento. Vai ver a rabugice do porteiro é intencional, pra combinar com a rabugice do prédio. Cuja, não a incomoda, mas incomoda de montão a rabugice do loiro enfezado.
Várias vezes por semana, ela percorre nesse corredor, a distância que separa a rua da portaria. Toda santa vez, ela lança um sonoro “bom dia” e abre seu mais caloroso e iluminado sorriso. Vã esperança! Não dá ibope. Sua simpatia cai em ouvidos moucos. O loirinho faz uma cara de mordomo inglês: “I beg your pardon?” E a ignora solenemente. E ela fica ali, abandonada que nem abóbora na janta. Ela só sabe que ele escuta seus efusivos cumprimentos porque seu dedo se move pela mesa em que está sentado, aperta um botãozinho e clic, libera a catraca pra ela entrar. Isso tudo sem dar nem a mínima olhada. A relação dos dois está restrita a esse bolero de Ravel. Tudo se resume àquele clic seco. Nem o mais leve bradissismo. Qualquer que seja o charme posto naquele “bom dia!”. Ela é invisível. Um ectoplasma, pelo menos pro loirinho dolicocéfalo.
O nó é que ela se aferrou ao projeto de vencer a rabugice. Não desiste. Cumprimenta alegremente, deseja feliz páscoa, feliz Natal, Carnaval, dia da criança, dia das mães. Não cola. Ela só sabe que é de carne e osso e ocupa (e como!) um lugar no espaço, porque o dedinho dele, logo que ela aparece, escorrega para o citado botãozinho, e clic! A catraca se abre e ela desaparece. Por um segundo ela existiu.
A operação se repete quando ela sai do edifício. O dedinho se move e clic!
Ano passado ocorreu um milagre de natal. Por um breve período, ele respondeu aos seus efusivos cumprimentos com um leve balbucio e os olhos enviesados. Vai ver, na esperança de que o Papai Noel em pessoa adentrasse o recinto e molhasse as mãozinhas do clic com algo que tivesse mais “sustança” do que um inútil “bom dia” que não engorda o bolso e nem rende juros. Ou isso, ou o Menino Jesus trouxe alguma doçura àquele coração empedernido. Mas esse prurido fraternal durou pouco. Tudo voltou à vaca fria.
O tempo foi passando e ela se viciou, meio que  ficou dependente da secura daquele clic. E ela se pegou pensando frequentemente no terrível segredo escondido naquela carcaça impassível de lord inglês.  Deu de pensar que debaixo desse amanuense, um inofensivo e mal humorado Mr. Hyde, se esconde um Dr. Jekyll, um assassino cruel e ardiloso, que breve vai envenenar a água do prédio, um soldado fanático do Estado Islâmico, um homem bomba prestes a explodir o edifício macambúzio, de liberdade duvidosa.
O certo é que a história foi ganhando contornos mais e mais explosivos e interessantes. Crime sanguinolento ou explosivo caso de espionagem? O loirinho passava, ora de agente da KGB, a inspetor do FBI (embora a aparência fosse mais pra Scotland Yard). E lá foi ela viajando na maionese de uma trama de espionagem a assassinato num corredor escuro.
Pois foi ontem, quando a narrativa já estava lá pela página 800, que aconteceu o imponderável: o loiro desapareceu. Sem mais aquela. Talvez farejando que alguém estava prestes a abrir o armário e descobrir o cadáver que andava escondendo há anos, nosso Dr. Jekyll deu no pé.
Até agora, apesar das buscas, seu paradeiro é incerto e não sabido. O livro ficou empacado na folha 800. Desastre total.
O novo porteiro é gordinho, sorridente e esparramado. Não tem nenhum perfil pra terrorista, Mr. Hyde ou  Dr. Jekyll.
O final da narrativa depende do loirinho rabugento. Sem ele a história vai pro brejo. Em último caso, ela está pensando em oferecer alguma recompensa. Tem ainda a esperança de escutar em algum lugar um som libertador. Um clic que abra a catraca e bote um fim nesse romance policial.





Maria Solange Amado Ladeira    -     17/10/2017

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