Espírito natalino
Solange Amado
O edifício se chama Liberdade. Uma liberdade meio atarracada,
meio macambúzia, diga-se de passagem, de uma cor amarronzada, meio fria, mal-humorada
.Entra-se nele por um imenso corredor, e após percorrer mais ou menos um quilômetro,
o atleta dá de cara com um porteiro loirinho e rabugento. Vai ver a rabugice do
porteiro é intencional, pra combinar com a rabugice do prédio. Cuja, não a
incomoda, mas incomoda de montão a rabugice do loiro enfezado.
Várias vezes por semana, ela percorre nesse corredor, a
distância que separa a rua da portaria. Toda santa vez, ela lança um sonoro
“bom dia” e abre seu mais caloroso e iluminado sorriso. Vã esperança! Não dá
ibope. Sua simpatia cai em ouvidos moucos. O loirinho faz uma cara de mordomo
inglês: “I beg your pardon?” E a ignora solenemente. E ela fica ali, abandonada
que nem abóbora na janta. Ela só sabe que ele escuta seus efusivos cumprimentos
porque seu dedo se move pela mesa em que está sentado, aperta um botãozinho e
clic, libera a catraca pra ela entrar. Isso tudo sem dar nem a mínima olhada. A
relação dos dois está restrita a esse bolero de Ravel. Tudo se resume àquele
clic seco. Nem o mais leve bradissismo. Qualquer que seja o charme posto
naquele “bom dia!”. Ela é invisível. Um ectoplasma, pelo menos pro loirinho
dolicocéfalo.
O nó é que ela se aferrou ao projeto de vencer a rabugice.
Não desiste. Cumprimenta alegremente, deseja feliz páscoa, feliz Natal,
Carnaval, dia da criança, dia das mães. Não cola. Ela só sabe que é de carne e
osso e ocupa (e como!) um lugar no espaço, porque o dedinho dele, logo que ela
aparece, escorrega para o citado botãozinho, e clic! A catraca se abre e ela
desaparece. Por um segundo ela existiu.
A operação se repete quando ela sai do edifício. O dedinho se
move e clic!
Ano passado ocorreu um milagre de natal. Por um breve
período, ele respondeu aos seus efusivos cumprimentos com um leve balbucio e os
olhos enviesados. Vai ver, na esperança de que o Papai Noel em pessoa
adentrasse o recinto e molhasse as mãozinhas do clic com algo que tivesse mais
“sustança” do que um inútil “bom dia” que não engorda o bolso e nem rende
juros. Ou isso, ou o Menino Jesus trouxe alguma doçura àquele coração
empedernido. Mas esse prurido fraternal durou pouco. Tudo voltou à vaca fria.
O tempo foi passando e ela se viciou, meio que ficou dependente da secura daquele clic. E
ela se pegou pensando frequentemente no terrível segredo escondido naquela
carcaça impassível de lord inglês. Deu
de pensar que debaixo desse amanuense, um inofensivo e mal humorado Mr. Hyde, se
esconde um Dr. Jekyll, um assassino cruel e ardiloso, que breve vai envenenar a
água do prédio, um soldado fanático do Estado Islâmico, um homem bomba prestes
a explodir o edifício macambúzio, de liberdade duvidosa.
O certo é que a história foi ganhando contornos mais e mais
explosivos e interessantes. Crime sanguinolento ou explosivo caso de
espionagem? O loirinho passava, ora de agente da KGB, a inspetor do FBI (embora
a aparência fosse mais pra Scotland Yard). E lá foi ela viajando na maionese de
uma trama de espionagem a assassinato num corredor escuro.
Pois foi ontem, quando a narrativa já estava lá pela página
800, que aconteceu o imponderável: o loiro desapareceu. Sem mais aquela. Talvez
farejando que alguém estava prestes a abrir o armário e descobrir o cadáver que
andava escondendo há anos, nosso Dr. Jekyll deu no pé.
Até agora, apesar das buscas, seu paradeiro é incerto e não
sabido. O livro ficou empacado na folha 800. Desastre total.
O novo porteiro é gordinho, sorridente e esparramado. Não tem
nenhum perfil pra terrorista, Mr. Hyde ou
Dr. Jekyll.
O final da narrativa depende do loirinho rabugento. Sem ele a
história vai pro brejo. Em último caso, ela está pensando em oferecer alguma
recompensa. Tem ainda a esperança de escutar em algum lugar um som libertador.
Um clic que abra a catraca e bote um fim nesse romance policial.
Maria Solange Amado Ladeira
- 17/10/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br
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