A mulher plural


Postado em 24/10/2017
A mulher plural
Solange Amado

“Sou uma pessoa plural”. Esse foi o primeiro sinal de alarme. Sou, humildemente uma pessoa singular, mas a Madame à minha frente insistia em ser plural. Por plural, leia-se: sua roupa variava de uma calça jeans rasgada e camisetas justas, ao vestido justo com uma rachadura sexy do lado, indo até o umbigo, ou um vestido de noite fru fru parecendo um balão de S. João, de um conhecido estilista.
Madame tinha me contratado para que eu montasse, para a sua casa nova e panorâmica, uma biblioteca “plural”. Confesso que eu não sabia o que era isso, mas fiquei sabendo rapidinho. Nesse caso, plural significava livros e autores badalados. Todos os que frequentassem o Jet set da literatura, indo de Shakespeare a Paulo Coelho. Ela deixou bem claro que os mais “na moda” tinham de ocupar lugar de honra. O layout tinha a função de mostrar aos convidados, o perfil ” intelectual” dos donos da casa.
Mas Madame fez questão de deixar tudo preto no branco: não gostava de ler. “Dá um sono danado!”. O Livro para ela, era uma espécie de hidromassagem em banheiro de rico: dá status. Então, valia o sacrifício.
Confesso que pensei em desistir da empreitada. A coisa toda meio que violentava os meus princípios. Durou pouco. A grana a ser recebida apaziguou a minha consciência. É triste, mas eu sou corruptível e a empreitada, não obstante encarar os destemperos de Madame, incluía a parte do prazer: ”gaste o que for preciso. Não temos limites no orçamento. Mesmo que for preciso importar algumas obras”. Isso era nada menos do que oferecer banana pra macaco.
Mandei brasa. Nada de livro barato. Nada de sebo. Só encadernações à altura da dona da casa.
Nadei de braçada. D. Quixote em castelhano, 3 volumes, capa de couro com fios dourados. Top de linha, como Cervantes merece. Danado de caro. Edições luxuosas de grandes clássicos. Primeiro os imortais, edições portentosas, depois, as edições mais furrecas, classe b da cultura livresca. Luxo e originalidade no concurso de fantasias literárias de Madame.
E lá fui eu. 3 mil exemplares escolhidos a dedo. Meu entusiasmo foi crescendo na mesma medida em que o entusiasmo de Madame murchava. As faturas chegavam e Madame se encolhia. Quanto desperdício!
A cascata da sua piscina, a parafernália eletrônica do vaso sanitário encomendado no exterior. Aí se justificavam os milhões gastos, mas 300 reais para 3 livrinhos desse tal de Cervantes? (Um achado no sebo). Quem iria achar ter custado esse tanto?
Sugeri que diminuíssemos a grana para o projeto, comprando exemplares mais normais, menos “plurais” dos livros. Neca. Não podia. Não queria enfeites baratos. E o projeto livro tinha essa função. De enfeitar.
Eu tinha companhia. O marchand contratado para adquirir os quadros que adornassem as paredes, sofria as penas do inferno, saltitando que nem pipoca na panela pra convencer Madame que o quadro custava uma fortuna porque era original. “Tem certeza de que esses balõezinhos de S. João valem isso tudo?” Era um Guignard nas mãos de Madame.
Nós dois nos cruzávamos na porta do palacete e nos reconhecíamos almas irmãs.
E lá fui eu me sentindo uma Cinderela, com príncipe encantado e tudo. Com um enorme salão de baile pra fazer minhas piruetas. Dormia sonhando que aquilo tudo era meu. E enfiava meus pezinhos nos sapatinhos de cristal. Serviam como uma luva.
Foi então que a carruagem virou abóbora. Horário de verão tem dessas coisas! Pega a gente desprevenida.
Faltavam ainda as três prateleiras de cima, com os títulos fora da visão dos visitantes, quando Madame solta a bomba. Alguém lhe deu a ideia brilhante: Livros de madeira! Encontrou um escultor talentoso pra fazer um painel de madeira com a fachada mostrando grandes coleções. Era só eu fotografar em algum lugar os originais. E pronto! Baita economia!
Devo confessar que ficou perfeito. Fileiras de livros de mentirinha. Mas a bobona fui eu. Era isso desde o princípio. Não era para ler. Era para ver. Pra ser bonito. E o que sei eu de beleza? Eu, que só milito nessa tenda de sapateiro que é a crônica, como já disse Rubem Braga. Fico no singular.
É isso. A beleza está sempre se casando com o dinheiro. Fica tudo muito plural. Não combina comigo. Só me resta apelar para o mecanismo das uvas verdes.



Maria Solange Amado Ladeira                    24/10/2017
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