De pianos e gatos


Postado em 19/09/2017
De pianos e gatos
Solange Amado

Mademoiselle Mathilde era parisiense desde que nasceu. Vivia em um daqueles pitorescos “arrondissements” de Paris, de ruazinhas estreitas. Ela e o piano. Um stenway meia cauda, dominando a sala do seu minúsculo apartamento. Não se sabe como o piano entrou ali com escadinhas tortuosas e espaços estreitos. Mistério insondável! Sobrava lugar para um pequeno sofá e uma estante com as partituras suas e dos alunos. E livros. Leitora voraz, Mademoiselle Mathilde gostava dos filósofos, especialmente, dos iluministas, à exceção de Voltaire, que ela adorara outrora, mas com o qual cortou relações, depois que ele disse: “Le pianoforte est un instrument de chaudronnier en comparaison au clavecin” (o piano é um instrumento de caldeireiro quando comparado ao cravo), mesmo que Voltaire tenha proferido essa pérola lá por volta de 1770, quando o cravo era o queridinho dos salões e o piano invadia o pedaço, forte e bonitão. Não houve jeito, Voltaire foi vencido e ainda ganhou a desconfiança de Mademoiselle Mathilde.
O piano reinava absoluto no coração da velha senhora. Uma relação apaixonada, exclusiva, ciumenta. Não sobrava lugar para nenhum estranho naquela simbiose. Todas as tardes suas mãos acariciavam o velho stenway com voluptuosidade, e ele correspondia ao carinho.Simples assim. Uma paixão que nunca se tranformara em ódio ou indiferença. Nem em algo mais sereno como o amor. Era algo destrambelhado, desmedido. Não havia dissonâncias, reentrâncias naquela completude. Tonalidade perfeita. E se algo ameaçasse se imiscuir naquela comunhão, era só chamar um “accordeur”, um afinador; ele apertava uma cravelha aqui outra ali. E  pronto. Nada de discutir a relação. Paixão é indiscutível. Ou se pensava assim. Até ele aparecer.
Pois foi num final de outono que ele surgiu cheio de frio e medo. O vento  varria a rua, soprando com força, e ele se encolhia todo contra o portão de entrada do prédio, cheio de fome e solidão. Um gato. Melhor dizendo, um gatinho, um filhote, perdido em meio a esse mundo cruel.
E essa agora!? Mathilde nunca gostara de gatos. Aquela coisa sorrateira, vagando pelos telhados, miando em dó sustenido menor, fazendo um amor barulhento e desafinado debaixo da sua janela. Paris era a cidade dos gatos. E gatos miavam, gatos arranhavam. E valha-me Deus! Pensava nas impecáveis teclas de marfim do seu stenway meia cauda. Decididamente gatos e pianos não combinam. Mas fazer o quê? Segurou aquela coisinha mole e arisca e seu miado desafinado vibrou alguma corda sensível do seu velho coração. Uma nota dissonante na sua vidinha tão organizada. Se tudo na vida dependesse de um “accordeur”...
E foi simples assim. Mademoiselle possuída por um amor contrariado, adotou tudo: gato, ração, cocô, xixi,miados, arranhões. E uma dubiedade foi se insinuando na sua relação impecável com o seu grande, negro e reluzente stenway.
O bichano começou por reduzir a trapos o feltro que cobria o teclado, lambia e arranhava as notas, principalmente a tecla do sol, por quem nutria grande paixão. Pior. Quando Mathilde tocava, o mecanismo do instrumento, com seus martelinhos batendo em velocidade estonteante, enlouquecia literalmente o animal. Para o gato era uma diversão só. Para Mathilde um desespero. Tampa levantada, o gato deu de dormir dentro do piano; o que frequentemente desafinava o danado e desandava a performance da pianista. Não havia “accordeur” que chegasse.
Em poucos meses, Mathilde se viu às voltas com aquela esquizofrenia bem francesa: piano versus gato. Livrar-se do piano ou do gato? Destruir o primeiro ou enforcar o segundo? As duas ideias se revezavam na sua cachola sem dó nem piedade.
Aquele triângulo amoroso não prometia nada de bom. A coisa estava nesse pé, quando a velha senhora teve um piripaque. Um amigo a encontrou caída junto ao piano, com um gato faminto miando em volta. Foi uma saída magistral. Batendo as botas, Mathilde se livrou dessa escolha de Sofia.
E no frigir dos ovos me livrou de escolher um fim pra essa história.. O que fizeram com o piano e com o gato já não me pertence. Nenhum deles cabe na minha casa.



Maria Solange Amado Ladeira       -      19/09/2017

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