Vida apertada


Postado em 08/08/2017
Vida apertada
Solange Amado

Vida apertada. 9 Horas da madrugada. A senhora vai ao dentista. O dente deu de doer.
O dia começa frio, monótono, sem sol. A senhora consulta a previsão do tempo nas suas juntas emperradas. Elas lhe dizem pra levar sombrinha. Vai chover.
Tem uma notícia boa outra ruim. A boa é que seus dentes estão aguentando firmes o passar do tempo e ela ainda não vai precisar de uma prótese, ou uma “prosta” como diz sua faxineira.A notícia ruim é que aquele docinho que a velha senhora rói depois do almoço já cavou um buraquinho debaixo da peça do molar inferior esquerdo. Peça novinha, diga-se de passagem. E o dinheirinho que era para molhar os pezinhos no mar azul de Fernando de Noronha vai pro bolso do dentista.Troca-se o molhar pelo molar. Dói mais o bolso do que o buraco do dente.
A Madame apela para o ”jogo do contente”. Seu vizinho da direita já não pode morder nem uma azeitona.  Na boca  tem ponte, pontilhão, viaduto, pinguela, mata-burro e mais algumas intervenções. Já engoliu um dente artificial ao morder um pé-de-moleque. Não obstante, o gajo não é de se jogar fora. Daí que dos males o menor. Um buraquinho no dente é menos danoso, pensa a vetusta senhora. Despeito. Pecado nada original.
O dentista aproveita que a pobre senhora está boquiaberta e não pode argumentar, pra deitar falação. Um receituário pra milionário nenhum botar defeito: só usar escova elétrica (penetra de maneira mais competente nos desvãos da dentadura), fio dental espessura X, marca y, se possível sem cera (nem Sherlock Holmes acha esse produto), pasta marca xy. Tudo pra matar os bichinhos bucais ou dentais.  Madame acredita. A bicharada deve morrer toda envenenada com o gosto de ovo podre da pasta de dentes. O ritual para usar toda essa parafernália é complicado.
Mas não vamos exagerar, planejando muito, dá pra escrever algo sofrível e até se alimentar no intervalo entre as dores.
Isto é, daria se  a moça não tivesse logo em seguida, de se dirigir ao dermatologista. Alí, a situação é mais periclitante.   Ouve uma diatribe sobre a sua falta de cuidados. O sermão da montanha: pele feia, manchada, ressecada, envelhecida por falta de cuidados. O que fazer para “rejuvelhecer”? Fácil. Banho quente? Nem pensar. Um frio de cão e a água deve ser bem friazinha. Lavar a cabeça todos os dias e deixar os cabelos secarem ao vento, como é seu costume? Nunquinha. Esse cabelo de macarrão de hospital? Hay que ter “sustança” E tome shampoos, cremes, óleos especiais. Isso sem falar nos rituais com a cútis. Nada de limpar com água e sabonete e ir dormir na santa paz do senhor. A idade exige atenção. A memória já não consegue guardar tantos nomes complicados de um sem número de cremes noturnos e diurnos, protetor solar, limpador, umidificador, suavizador, tirador de manchas, desenrugador. Uma salada grega.
Madame ouve tudo de maneira contrita. Não se pode duvidar de médicos e dentistas. Ela tem certeza de que foram ao Egito e se especializaram na técnica de mumificação em vida.
E ela tem pelo menos um consolo. Com todos esses recursos da medicina, da odontologia e da cosmética, à medida que o tempo passar, vai ficar muito mais bonita do que a múmia do Faraó Ramsés II.




Maria Solange Amado Ladeira                   08/08/2017

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