Será que a escrita dói?


Será que a escrita dói?
Solange Amado

A moça fica ali pensando que há muito caô pelo mundo. Existe sim, muita coisa indolor, inodora e insípida, além da água. Existe coisa que não fede nem cheira. Existe até gente coluna do meio, que passa a vida nos trilhos, e o trem nem pega porque não vale a pena. Não tem nem sal nem tempero. Se tocar a gente, não faz nem cosquinha.
Mas não se iludam, a escrita não é desse time de decoração clean. Escrever dói, machuca. Digamos assim que é prazer e dor. É preciso esforço, sofrimento e energia para tentar se ver livre da falta, do buraco dessa boca gulosa e insaciável do real que nos habita.
O escritor e crítico literário Maurice Blanchot já disse que o discurso é o traço de uma ausência. Vamos dar um sentido ao que não tem nenhum. Com as armas que temos: as palavras.
Mesmo que saibamos que as palavras são feitas pra falhar. Que essa rede sobre o vazio não seja lá de grande eficiência. Tecer as palavras nos dá esperanças, nos faz acreditar. É uma ponte mambembe sobre o nada. Mas é. E a gente continua tecendo. Dói, mas é tão bom que vicia. Pura adrenalina. A gente salta no momento certo, Mas já teceu a rede.
Essa coisa de escrever é complicada. Escrever dói, mas a gente o faz justamente pro nonsense da vida doer menos. Bem paradoxal.
Digamos que é uma dor boa. Uma mordidinha aqui, outra alí, uma chave de braço, uma zanga e o prazer de tecer com essa linha especial que é a palavra.
Mas não é assim tão de graça. As palavras são rebeldes. Nem sempre obedecem de bom grado. Você vai perder a paciência com bastante frequência. Não é um caso de amor sem arestas. Mas amor é risco. Não espere condescendências.
E é disso que a moça tá falando. De um caso de amor  com as palavras. Amor de mãe, que é o mais esquisito do mundo.
Por mais que o filho apronte, quando ele vem com cara de desamparo, se encaixa no seu colo e lhe dá um beijo na bochecha, o prazer não tem preço. O mundo se derrete em montanhas de doçura.
As palavras são assim: aprontam legal, estressam, magoam. Mas quando se encaixam redondinhas na alma e na folha, não há coração de mãe que resista. É todo orgulho do filho recém-nascido.
E aí, é só aproveitar, antes que o vazio se abra de novo e ameace nos engolir. Já percebeu que não se tem escolha. Então, aproveite, dance com as palavras, brinque, cante, recite. Sem ensaio não há espetáculo.  Teça a sua rede. Doa a quem doer.


Maria Solange Amado Ladeira   -      26/07/2017

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