O pedido
Solange Amado
Modelito conto de fadas. O moço muito apaixonado pela
moça.Tudo muito cor-de-rosa. Muita certeza. Muita perfeição. Mas essa vie en
rose desmoronou no dia em que a donzela foi presenteada com uma coleção de
galhos na testa.
No passado, ela já havia lido em algum lugar que meninas que
sabem ler livros não sabem ler homens. Dito e feito. Ela foi incompetente para
ler os sinais. Vivia no mundo da lua. Botar o pé na real dá muito trabalho. Daí
que era melhor andar com eles plantados no ar.
Quanto mais os chifres iam brotando na sua testa, mais ela se enterrava
na fantasia.
Claro que ela não queria saber. Elementar. Mas querendo ou
não, um dia o esqueleto pulou de dentro do armário e se plantou na frente dela. Não dá para
ignorar certas coisas, nem que a vaca tussa.
E aí, a carruagem virou abóbora, o príncipe virou rato. O
sonho virou pesadelo.
A dor bateu forte. Coração, cabeça e cotovelo. Mas a moça
sobreviveu. Sobreviveu não seria bem o termo. Ela SOBviveu. Dalí em
diante, a ordem era desconfiar de tudo o que fosse “over”. E amor é a coisa
mais “over” que se conhece. Botou as barbas de molho. Alguém já disse: “se você
vir o queijo e a goiabada na mesa do pobre, desconfie dos três: do queijo, da
goiabada e do pobre”. Lição aprendida.
E assim, a jovem donzela retirou-se para a sua zona de
conforto e se instalou firmemente aí. Nada de surpresas.
Foi então que ele a pediu em casamento.
Susto. Grande surpresa! Afinal ele era muita areia para o seu
caminhãozinho. Areia de má qualidade, ela desconfiava. Era rico. Muito. Nada
bonito. Elegante, mesmo com uma barriguinha incipiente. Sorriso fácil, boa
lábia. Popularidade em alta. Tinha um chofer que o carregava pra cima e pra
baixo num carrão preto de impor respeito. Uma vaca sagrada do alto escalão da
política, com “opção pelos pobres”, e com muito pouca coisa de pobre.
Deslocava-se pelos ares num jatinho particular, com o inevitável cordão de
puxa-sacos prestando vassalagem.
O mundo da jovem donzela e o do mancebo em questão, jamais se
cruzariam se não fossem as letras. Ele a contratou para dar uma forma aos seus
discursos.
E lá foi ela. O chofer ia buscá-la, uniformizado e tão
discreto como um mordomo inglês. Simpático. Os dois se deram bem desde o
primeiro encontro. De vez em quando, pelo olhar periférico, a moça supreendia
sua curiosidade.A moça apostava um doce como adivinhava seu pensamento. O que
acontecia nas duas horas em que ela passava a portas fechadas com o patrão?
Nada demais. Ela escrevia. O patrão já botava olho comprido. Demorava olhares,
demorava suas mãos sobre as dela, insinuava convites. Mas a moça são sabia ler
homens. E continuou não sabendo. Mesmo quando ele a convidou para dar uma volta
no seu jatinho. Convite não aceito. Ela nunca simpatizou com coisas que voam,
excetuando alguns pássaros.
Daí que essa história não teve nenhum depois. O antes não
passou do hall de entrada.
E os anos se passaram. O fato ficou preso em alguma gaveta da
memória. Até algumas semanas atrás, quando a moça liga a televisão . Do lado de
dentro daquela caixinha falante, seu ex-pretendente, o único homem a pedir
solenemente “sua mão em casamento”, desfilava cabisbaixo com uma tornozeleira
eletrônica. E pior, sem o indefectível cordão de puxa-sacos.
Maria Solange Amado Ladeira - 29/08/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br

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