O pedido


Postado em 29/08/2017
O pedido
Solange Amado

Modelito conto de fadas. O moço muito apaixonado pela moça.Tudo muito cor-de-rosa. Muita certeza. Muita perfeição. Mas essa vie en rose desmoronou no dia em que a donzela foi presenteada com uma coleção de galhos na testa.
No passado, ela já havia lido em algum lugar que meninas que sabem ler livros não sabem ler homens. Dito e feito. Ela foi incompetente para ler os sinais. Vivia no mundo da lua. Botar o pé na real dá muito trabalho. Daí que era melhor andar com eles plantados no ar.  Quanto mais os chifres iam brotando na sua testa, mais ela se enterrava na fantasia.
Claro que ela não queria saber. Elementar. Mas querendo ou não, um dia o esqueleto pulou de dentro do armário  e se plantou na frente dela. Não dá para ignorar certas coisas, nem que a vaca tussa.
E aí, a carruagem virou abóbora, o príncipe virou rato. O sonho virou pesadelo.
A dor bateu forte. Coração, cabeça e cotovelo. Mas a moça sobreviveu. Sobreviveu não seria bem o termo. Ela SOBviveu. Dalí em diante, a ordem era desconfiar de tudo o que fosse “over”. E amor é a coisa mais “over” que se conhece. Botou as barbas de molho. Alguém já disse: “se você vir o queijo e a goiabada na mesa do pobre, desconfie dos três: do queijo, da goiabada e do pobre”. Lição aprendida.
E assim, a jovem donzela retirou-se para a sua zona de conforto e se instalou firmemente aí. Nada de surpresas.
Foi então que ele a pediu em casamento.
Susto. Grande surpresa! Afinal ele era muita areia para o seu caminhãozinho. Areia de má qualidade, ela desconfiava. Era rico. Muito. Nada bonito. Elegante, mesmo com uma barriguinha incipiente. Sorriso fácil, boa lábia. Popularidade em alta. Tinha um chofer que o carregava pra cima e pra baixo num carrão preto de impor respeito. Uma vaca sagrada do alto escalão da política, com “opção pelos pobres”, e com muito pouca coisa de pobre. Deslocava-se pelos ares num jatinho particular, com o inevitável cordão de puxa-sacos prestando vassalagem.
O mundo da jovem donzela e o do mancebo em questão, jamais se cruzariam se não fossem as letras. Ele a contratou para dar uma forma aos seus discursos.
E lá foi ela. O chofer ia buscá-la, uniformizado e tão discreto como um mordomo inglês. Simpático. Os dois se deram bem desde o primeiro encontro. De vez em quando, pelo olhar periférico, a moça supreendia sua curiosidade.A moça apostava um doce como adivinhava seu pensamento. O que acontecia nas duas horas em que ela passava a portas fechadas com o patrão? Nada demais. Ela escrevia. O patrão já botava olho comprido. Demorava olhares, demorava suas mãos sobre as dela, insinuava convites. Mas a moça são sabia ler homens. E continuou não sabendo. Mesmo quando ele a convidou para dar uma volta no seu jatinho. Convite não aceito. Ela nunca simpatizou com coisas que voam, excetuando alguns pássaros.
Daí que essa história não teve nenhum depois. O antes não passou  do hall de entrada.
E os anos se passaram. O fato ficou preso em alguma gaveta da memória. Até algumas semanas atrás, quando a moça liga a televisão . Do lado de dentro daquela caixinha falante, seu ex-pretendente, o único homem a pedir solenemente “sua mão em casamento”, desfilava cabisbaixo com uma tornozeleira eletrônica. E pior, sem o indefectível cordão de puxa-sacos.


Maria Solange Amado Ladeira -       29/08/2017

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