Poema
Solange Amado
Não sei quem disse isso, mas vai servir como uma luva: “Aos
dezessete anos se vai à guerra com uma flor no cano do fuzil”. Fogo nos olhos e
ternura no coração. Vá lá entender essa vida!
A inspiração me toca com suavidade, mas com insistência.
Resisto. Ela sopra nos meus ouvidos e sussurra um chamado. Tentação. Mas o
barulho lá fora não me deixa ouvir. Uma freada, uma batida, um palavrão. Não há
lugar para delicadezas.
A Coreia do Norte me ameaça com seu poderoso míssil. Um
cachorro late feroz. Malas de dinheiro passam de mão em mão. É meu parco
dinheirinho indo pro brejo.
Como é que eu vou prestar atenção no toque tímido e diáfano
de um anjo no meio desse caos?
Não tenho um fuzil. Nem uma flor. Não pretendo ir à guerra.
Só quero fazer um poema. Com o pouco que eu tenho. Fazer das tripas, coração.
Varrer essa poeira barulhenta do asfalto, torná-la pó de estrelas, penetrando
nos desvãos da alma, tocando o coração, fazendo das palavras um dique contra o mar
de lama, de sujeira, de maldade, de fanatismo, que enfeia a vida.
Minha palavra é um fuzil ou é uma flor? O anjo sussurra,
insiste, me estimula a empunhar minha arma. Não tenho um fuzil. Não tenho uma
flor. Tenho um carregamento de palavras. Meu fuzil é uma caneta. Mas a mira é
fraca. Será que basta esse combustível?
Eu até que olho, mas não vejo. Eu até que ouço, mas não
escuto. A inspiração fala baixo. A vida faz muito barulho.
Se a inspiração fosse menos sutil. Se ela entendesse que tem
de chegar de bota e espora, arrebentando portas e janelas, dizendo a que veio,
eu entenderia. Mas não. Ela se senta no fundo da sala. Só observando. Na ponta
dos pés. Só cutuca. E quer que eu bote reparo nela.
Vai daí que o meu poema vai pra corda do sino. Eu nunca chego
nos finalmentes. E aí, eu quero deixar bem claro. Não é culpa minha. É da
inspiração, que quando vem, tem passinhos de bailarina, minúsculos, diáfanos.
Chego a tropeçar nela. Tão silenciosa quando se aproxima. A gente acaba
atropelando.
Ela me dá nos nervosl Não fala, sussurra. Não anda, paira no
ar. Só é persistente. Quando pega não larga mais. Que nem traça. Vai comendo
pelas beiradinhas. Você se contorce. Se encolhe. Se estica. Refuga. E ela ali,
firme.
Poema que é bom, néca! Porque, não sei se já notaram, a
inspiração é um tanto sádica: jamais ensina o caminho das pedras. Só joga a
isca. Quando você vai atrás, salivando, ela se afasta. Vem em ondas, à Guimarães
Rosa, aperta e afrouxa. Aparece e se esconde.
E o poema, néca! Ela me dá uma pista. E eu me atiro com
força. Quero abocanhar as palavras, já cozidas. O prato feito. Só para
descobrir que o poema vive mesmo é no caminho, no intervalo, nas reentrâncias.
É a flor e o fuzil. Não tem final feliz. É essa minha ânsia. A incoerência da
vida. Uma surpresa dolorosa.
Ferreira Gullar manjou a coisa toda quando disse: “A minha
poesia nasce do espanto”. Fico aqui, espantada. Poema que é bom, néca!
Maria Solange Amado Ladeira
- 11/07/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br

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