Poema


Postado em 11/07/2017
Poema
Solange Amado

Não sei quem disse isso, mas vai servir como uma luva: “Aos dezessete anos se vai à guerra com uma flor no cano do fuzil”. Fogo nos olhos e ternura no coração. Vá lá entender essa vida!
A inspiração me toca com suavidade, mas com insistência. Resisto. Ela sopra nos meus ouvidos e sussurra um chamado. Tentação. Mas o barulho lá fora não me deixa ouvir. Uma freada, uma batida, um palavrão. Não há lugar para delicadezas.
A Coreia do Norte me ameaça com seu poderoso míssil. Um cachorro late feroz. Malas de dinheiro passam de mão em mão. É meu parco dinheirinho indo pro brejo.
Como é que eu vou prestar atenção no toque tímido e diáfano de um anjo no meio desse caos?
Não tenho um fuzil. Nem uma flor. Não pretendo ir à guerra. Só quero fazer um poema. Com o pouco que eu tenho. Fazer das tripas, coração. Varrer essa poeira barulhenta do asfalto, torná-la pó de estrelas, penetrando nos desvãos da alma, tocando o coração, fazendo das palavras um dique contra o mar de lama, de sujeira, de maldade, de fanatismo, que enfeia a vida.
Minha palavra é um fuzil ou é uma flor? O anjo sussurra, insiste, me estimula a empunhar minha arma. Não tenho um fuzil. Não tenho uma flor. Tenho um carregamento de palavras. Meu fuzil é uma caneta. Mas a mira é fraca. Será que basta esse combustível?
Eu até que olho, mas não vejo. Eu até que ouço, mas não escuto. A inspiração fala baixo. A vida faz muito barulho.
Se a inspiração fosse menos sutil. Se ela entendesse que tem de chegar de bota e espora, arrebentando portas e janelas, dizendo a que veio, eu entenderia. Mas não. Ela se senta no fundo da sala. Só observando. Na ponta dos pés. Só cutuca. E quer que eu bote reparo nela.
Vai daí que o meu poema vai pra corda do sino. Eu nunca chego nos finalmentes. E aí, eu quero deixar bem claro. Não é culpa minha. É da inspiração, que quando vem, tem passinhos de bailarina, minúsculos, diáfanos. Chego a tropeçar nela. Tão silenciosa quando se aproxima. A gente acaba atropelando.
Ela me dá nos nervosl Não fala, sussurra. Não anda, paira no ar. Só é persistente. Quando pega não larga mais. Que nem traça. Vai comendo pelas beiradinhas. Você se contorce. Se encolhe. Se estica. Refuga. E ela ali, firme.
Poema que é bom, néca! Porque, não sei se já notaram, a inspiração é um tanto sádica: jamais ensina o caminho das pedras. Só joga a isca. Quando você vai atrás, salivando, ela se afasta. Vem em ondas, à Guimarães Rosa, aperta e afrouxa. Aparece e se esconde.
E o poema, néca! Ela me dá uma pista. E eu me atiro com força. Quero abocanhar as palavras, já cozidas. O prato feito. Só para descobrir que o poema vive mesmo é no caminho, no intervalo, nas reentrâncias. É a flor e o fuzil. Não tem final feliz. É essa minha ânsia. A incoerência da vida. Uma surpresa dolorosa.
Ferreira Gullar manjou a coisa toda quando disse: “A minha poesia nasce do espanto”. Fico aqui, espantada. Poema que é bom, néca!




Maria Solange Amado Ladeira   -        11/07/2017
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