Postado em 20/06/2017
Fidelidade canina
Solange Amado

Cresceu. Entrou para a Universidade. Livrou-se das chineladas na bunda aplicadas pelo pai severo, mas não escapou das cassetadas do glorioso exército brasileiro.
Anos de chumbo. Ditadura sanguinária de direita tentava calar a rebeldia que as chineladas do pai não conseguiram. Tempo em que as opiniões tinham de ser arrolhadas. Os jovens ansiavam por botar a boca no mundo, e quanto mais o governo apertava as mãos, mais essa ansiedade escorria por entre os dedos, incontrolável.
Então, apareceu um Gandhi brasileiro, ou se quiserem, algo como Madre Tereza de Calcutá com sua opção pela pobreza. E a moçada o adotou como salvador da pátria. Confiança cega. Enfrentava as feras, dava a cara a tapa e prometia mundos e fundos. A moça caiu de quatro. Resistir, quem há de? Tornou-se ativista de esquerda. Enfrentava a cavalaria, acampava nos Ministérios e enchia o saco dos amigos com uma doutrinação chatissima. E eles perdiam o sono de preocupação pela sua integridade física. O cachorro da casa sofria mais. Ocasionalmente passava fome e sede, preso em casa, quando sua dona sumia acompanhando seu ídolo com uma fé que removia montanhas, e só aumentava a desconfiança dos seus íntimos, que já conheciam sua personalidade de arroubos e paixões.
Até que durou. E teria durado mais se a moça não tivesse crescido mais um pouquinho. Livrou-se das chineladas na bunda e das cassetadas da polícia. Mas não se livrou das cassetadas da realidade.
Foi quando o pedestal que sustentava seu ídolo começou a apresentar enormes rachaduras. A princípio ignorou. “Ponho minha mão no fogo”. Quando a mão começou a queimar, o cheiro ruim apareceu. Havia algo de podre no reino da Dinamarca. Não teve jeito. Abandonou o barco. Os fanáticos também desamam.
Apresentou todos os sintomas de esposa traída. Aquela ladainha de “eu confiava nele”, etc. Mas sobreviveu. E pior. Encheu o vazio da perda com outra paixonite. Esse já era seu conhecido de façanhas rocambolescas na juventude. Mas a moça arranjou um álibi: “águas passadas. Qual adolescente não apronta”? Ela mesma cheirou e pitou fartamente um certo tempo. E bateu cabeça até alcançar o bom caminho.
Falou e fez.Mergulhou na campanha política do seu novo ídolo. Santinhos, cartazes, e tome saliva para se convencer e aos sofridos amigos, tontos com esse discurso cambalhota.
O legal é que essa nova febre não durou muito. O novo ídolo já veio carunchado. Daí não ter dado tempo de muito apego.
Sem um Cristo para lhe apontar o caminho das pedras, nossa amiga periga cair no vazio da desesperança. Como manter a fé cega e a faca amolada na sua cruzada política, se não tem ninguém por quem pelejar?
É isso que preocupa os amigos. Tem gente que precisa santificar algo ou alguém que sustente uma plenitude inexistente.
Os amigos da moça estão grilados. Como a vida não dá garantias e a moça precisa de garantias, eles já estão botando reparo no seu olho comprido. Já estão começando a suspeitar da sua troca de olhares com um novo milagreiro. Nova cambalhota. Ela anda flertando com a direita, quem sabe, saudosa dos tempos em que  cheirava gás lacrimogêneo.
Não se sabe ainda se é namoro ou amizade. O que se sabe com certeza é que, pelo andar da carruagem, haverá a fase da entrega, a embriaguez da paixão, o discurso mi-mi-mi torrando a paciência dos amigos, a suspeita, e finalmente, o divórcio sofrido, com direito a quebrar CDs e rasgar fotos.
Pode parecer crueldade, mas os amigos estão esperando ansiosos mais esse divórcio, que ninguém é de ferro. E, justiça seja feita, eles não podem se queixar: também foram beneficiados com essa fidelidade canina, esse entusiasmo e essa paixão desmedidos.
E como todo mundo sabe que paixão é doença, periga a casa cair se ela se curar.Vai que ela começa a botar reparo nos defeitos de fabricação do seu rebanho de amigos?
Mas acho que desse susto ninguém vai morrer. Nenhum ser se cura de si mesmo. Graças a Deus.


Maria Solange Amado Ladeira     -     20/06/2017


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